Dois minutos

Não acredito que ela me trocou por esse otário! Do outro lado da rua, em pé, próximo ao ponto de ônibus, Adão lançava um olhar fulminante contra o casal que trocava carinho num dos bancos da praça. Enlouquecido pelos ciúmes, ele agora era um lobo feroz esperando a melhor ocasião para atacar sua presa. Como era possível que um rapaz que até poucos meses atrás era tão pacífico tivesse se transformado naquele completo desequilibrado?

É agora! pensou ele então. Logo depois, puxou discretamente um canivete do bolso de suas calças e deu os primeiros passos em direção a suas vítimas. Antes que conseguisse alcançá-las, no entanto, foi surpreendido por uma caminhonete azul que surgiu ao lado de um ônibus que se encontrava parado.

Com o tumulto, o jovem casal se levantou sobressaltado e correu para ver o que havia sucedido. Uma multidão de curiosos cercava o rapaz caído ao mesmo tempo em que tentava registrar o acontecimento em seus celulares. Dois homens, pai e filho, que estavam na caminhonete, prestavam os primeiros socorros ao ferido. Por fim, Sâmia conseguiu identificá-lo.

— Maike, meu Deus, é Adão! — constatou a garota, perplexa.

Diante disso, o namorado dela pediu às pessoas que os deixassem passar porque haviam reconhecido a vítima.

— Não se mexa, meu rapaz, a ambulância já tá chegando — assegurou um dos homens, o mais velho. Ao perceber a presença dos dois jovens aflitos ali, dirigiu-se a eles.

— Vocês são parentes ou amigos?

— A gente trabalhava junto — respondeu ela.

Os ex-colegas de Adão se agacharam junto a ele.

— Sâmia... eu vou morrer... eu vou morrer...

— Não se esforce, cara, a gente tá com você, fique calmo — disse Maike.

Adão apagou. De súbito, sentiu que sua consciência escapava por seus poros como feixes de luz alva, o que estaria acontecendo com ele? Uma explosão silenciosa, estava se dissipando pelo ar... Que sensação gostosa! Logo se daria conta de que tudo aquilo era muito mais enigmático do que aparentava ser, não percebia seus pés, suas mãos... Não percebia mais seu corpo! Não sei onde eu começo nem onde eu termino, isso é bizarro, mas é bom!

Tal qual uma gota de chuva que se perde na imensidão do oceano, ele se via confundido com o universo infinito, era como se seu eu estivesse em todos os lugares ao mesmo tempo, e seu nível de sabedoria tivesse alcançado o patamar mais elevado. Eu simplesmente sei! Conheço todos os mistérios da vida e da morte. Não era fácil codificar aquela experiência em palavras...

Eu sou o céu, o sol, as estrelas, a lua, o mar... Eu estou em cada ser vivo, em cada planta, em cada animal, em cada ser humano... Em cada pedacinho do universo. Meu Deus, somos todos um só! Adão havia enfim encontrado sua verdadeira essência.

Enquanto isso, no Hospital Municipal de... uma equipe de seis pessoas se esforçava para trazê-lo de volta. Do lado de fora da sala, a mãe do rapaz, que era católica fiel, chorava e implorava fervorosamente a Deus que devolvesse seu filho querido, era uma cena de partir o coração.

Quando o médico apareceu à porta, fazendo uma cara de desapontamento, Yara não conseguiu mais se conter e desmoronou no chão. Alguns minutos depois, despertou num dos leitos do hospital, agarrando a mão de uma enfermeira com todas as forças.

— Cadê meu filho?!

— Espere, Dona Yara, fique calma.

— Cadê!?

A mulher se agitou de novo.

— Calma, a senhora não pode se levantar ainda.

— Meu filho!

— Ele está bem! Ele está bem!

— É mentira, me deixe!

— Sim, Yara, é verdade, ele tá bem! — confirmou Lia, uma amiga que a acompanhava.

— É mesmo!? Então onde ele tá?! Por que o doutor fez aquela cara?!

— Houve um engano — afirmou a enfermeira ao passo que aferia a pressão da paciente. — A senhora é uma mulher de muita fé, Deus ouviu suas preces.

— Jesus ressuscitou seu filho, Yara, assim como o filho da viúva de Naim, como a filha de Jairo... Como Lázaro, minha amiga!

— Ô, minha amiga, graças a Deus!

Em seguida, o doutor apareceu.

— Como a senhora se sente?

— Agora, doutor? Novinha em folha!

— Então, Dona Yara, seu filho despertou logo depois que a senhora desmaiou, ele passou dois minutos em parada cardiorrespiratória, é um guerreiro, como a senhora!

— Ai, meu Deus! E eu posso ver ele?

— Tudo certo com ela, Marli? — perguntou ele à enfermeira.

— Tudo ok.

— Vamos lá, Dona Yara.

Lia ajudou a amiga a se levantar, e ambas se dirigiram à enfermaria onde Adão se recuperava. Ao entrarem, a mãe, já bastante aliviada, sentiu um calorzinho no coração, deu um suspiro, ergueu as mãos para o céu e agradeceu outra vez ao Dono da Vida.

— Filho!

— Mãe? A senhora tá chorando? Eu tô bem.

— Ela tá chorando de felicidade!

— Oi, Lia — disse ele. — Eu sei, eu posso sentir a felicidade dela aqui, dentro de mim.

— Jesus trouxe você de volta pra mim, meu amor!

— Você vivia dizendo pra sua mãe que não acreditava em Deus, olha aí!

— Não sei se foi Jesus, só sei que agora eu não tenho mais medo da morte, mãe!

— Do que você está falando?!

— Não sei se foi Deus, mas algo muito misterioso aconteceu... É maravilhoso, a senhora nem imagina! A gente passa a vida inteira ansioso, com medo desse momento, mas é tudo tão belo, tão libertador! Eu queria ter ficado.

Lia fez um gesto de reprovação com a cabeça; Yara exclamou:

— Não, não diga uma coisa dessas! Nem de brincadeira!

— Não se preocupe, mãe, também tô feliz por ter voltado, precisava contar isso pro mundo. A vida é incrível, e agora eu vou aproveitar ao máximo, sem ódio, sem inveja, sem medo! Não existe nem céu, nem inferno, só o infinito!

— Tá bom, querido, tudo bem — disse Yara, meio cética.

Num canto, a sós com o médico, ela comentou que o filho estava esquisito, pois não falava coisa com coisa. Sempre calmo e atencioso, o doutor explicou que aquilo era normal numa pessoa que havia passado por aquela situação e que o caso do rapaz ainda seria melhor avaliado. Sendo assim, ele informou que solicitaria mais exames no paciente, e que logo se saberia como estavam suas condições neurológicas.

— E sobre essa experiência espiritual que ele diz que teve? O que o senhor acha?

— Não tenho competência pra responder sobre questões espirituais, cada um tem a sua fé. Mas, cientificamente, o que eu posso dizer é que seu filho vivenciou uma experiência alucinatória, muito comum nesses casos. A julgar pelo quadro, Adão ainda parece desligado da realidade, mas não se preocupe, faremos de tudo pra que ele se recupere.

No dia seguinte, Adão recebeu a visita de Sâmia.

— Tudo bem?! — perguntou ela. — Você deu um sustão na gente.

— Vaso ruim não quebra. E Maike?

— Tá aí, mas achou melhor não entrar.

— Muita coisa mudou, e agora eu posso sentir a sinceridade do amor de vocês no fundo de meu coração.

A garota fez uma cara de confusa e ficou em silêncio por um breve instante, logo a seguir, porém, decidiu falar.

— Mas você ficou furioso quando descobriu que...

— Não importa! Isso é insignificante diante da grandeza da vida, só o amor importa! Pede pra ele entrar.

Sâmia se dirigiu à recepção e chamou o namorado.

— E aí, Adão? Beleza?!

— Beleza!... Vocês realmente formam um casal muito bonito, uma química, uma cumplicidade...

Maike olhou para Sâmia surpreso.

— Eu entendo a confusão de vocês, se soubessem as coisas lindas que eu senti...

— A gente não sabe — disse Maike. — Mas a gente tem certeza de que foi algo muito bom, a gente também tá muito feliz por você e torce pra que tudo dê certo.

— Eu não esperava outra coisa de vocês, mas, antes de tudo, preciso contar por que eu vim parar aqui, nesse leito de hospital. Por coisa boa não foi.

— Você sofreu um acidente... — disse Sâmia.

— Se eu não tivesse feito o que eu fiz, não estaria aqui.

Os namorados se entreolharam sem entender nada; ele continuou:

— A honestidade é a base de uma amizade sincera, e eu quero que a gente seja amigo novamente, de verdade. O que eu aprendi com essa experiência foi que todos estamos conectados, ou melhor, tudo tá conectado, assim como num quebra-cabeça somos parte de um todo... Preciso confessar o que eu fiz porque tô muito arrependido.

— É melhor a gente esquecer do passado, como você mesmo disse: muita coisa mudou — ponderou Sâmia.

— Ontem eu tava observando vocês na praça e... Eu sabia que isso ia ser complicado, tô morrendo de vergonha e medo de não ser perdoado.

— Cara, não precisa contar nada se não quiser, tá tudo bem! — disse Maike.

— Eu preciso contar, tudo que eu passei mudou minha maneira de ver o mundo, por isso eu vou falar — Fez uma pausa e prosseguiu: — Eu... Eu queria fazer mal a vocês... — Começou a chorar. — Vocês me perdoam por isso!? Eu sei que foi horrível!

Os amigos de Adão o abraçaram, os laços que os uniam se tornaram fortes e sinceros. FIM

Leon Souza
Enviado por Leon Souza em 21/12/2024
Código do texto: T8224316
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