Jornada sem fim

O rosto repousava sobre uma areia clara, foi abrindo os olhos devagar e começou lentamente a ver alguma coisa. E via areia, muita areia. Estava difícil levantar-se, sentia o corpo pesado e as juntas doíam. Conseguiu sentar-se e a visão começou a ficar mais nítida, mas ainda assim enxergava somente areia à sua frente. À sua frente, dos lados, atrás, areia por todo lado. “Aquilo parecia um deserto, mas que diabos de deserto, como saberia se nunca estive num antes, só ouvi falar e vi fotos?”. Cambaleando, conseguiu ficar de pé e iniciou a caminhada com dificuldade. Não sabia onde estava nem para onde ir, mas começou a andar e seguiu para onde o nariz apontava. “O que aconteceu comigo, não consigo raciocinar”. Sentia a cabeça inchada e um zumbido no ouvido, fraco, porém muito irritante. “Talvez tenha sido atropelado e projetado para esse lado. Isso, acho que fui atropelado.” As dores disseminadas pelo corpo poderiam indicar um atropelamento, porém, logo compreendeu que seria ilógico presumir tal ocorrência, considerando que conseguiu se levantar e caminhar normalmente já em seguida. De certa forma, esse raciocínio lhe trouxe alívio, passava a pensar com clareza e isso poderia ser um bom sinal, pois afastava, pelo menos por ora, a possibilidade de ter ficado louco.

“Ande depressa Aldo, você é muito lerdo, não vamos chegar a tempo para sua aula. Depois eu que tenho que dar satisfação para sua professora”. As pequenas pernas de Aldo tentavam acompanhar a mãe que andava a passos largos, parecia apressada. Aliás, sempre estava apressada e se irritava com facilidade, principalmente com ele. Aldo sempre se sentiu um intruso, e que atrapalhava a todos naquela casa. A mãe alertou ameaçadoramente: “Ande rápido, menino, ou terá problemas comigo depois”, e puxou Aldo, que foi forçado a apressar-se para não ser arrastado.

Agora se sentia um tanto mais consciente e pediu calma a si próprio. Teria que primeiro definir onde estaria para depois responder outras questões que lhe vinham à mente. Essa areia parecia areia de praia e de fato começou a distinguir o cheiro que sentia: “aquilo era cheiro de mar”. Olhou ao redor, limpou os olhos, tentando se livrar daquela coisa branca que lhe atrapalhava a visão. Custou, mas entendeu que aquilo era uma névoa densa e não um defeito dos seus olhos. Conseguiu enxergar a água do mar e isso lhe conferiu uma enorme satisfação. Não estaria tão perdido assim. Agora, já podia olhar ao redor sem medo; olhou, olhou e nada viu, só praia e mar. “Uma praia totalmente deserta…, mas porque, o que aconteceu?”

Tia Maiara chegou mais cedo do que costumava chegar, naquele domingo quente. Vinha todo domingo para a missa das nove, morava na roça. Apareceu no seu Fusca verde abacate, muito bem conservado. “Aldo, sua tia chegou!”. E Aldo saiu correndo para receber a Tia. Gostava muito dela, era a melhor das tias e claro, sempre trazia um embrulhinho cheio daquelas balas redondinhas com furinho. Havia as amarelas, as vermelhas e as verdes. Aldo ficava feliz. O domingo era o dia mais feliz, os demais dias não. Tia Maiara tinha voz suave, pele lisa, cabelos vermelhos e um sorriso especial. Sua paciência com tudo e com todos saltava à vista. Depois da missa, a tia costumava levar Aldo para dar voltas de Fusca com direito a sorvete do sorveteiro da Kombi no final do passeio: essa era a noção de felicidade do pequeno Aldo.

Estava calor e quis saber da hora, procurou o relógio no pulso e não o achou. Sempre andava de relógio, nunca andava sem. “Mas o que estava acontecendo?” Continuou andando e cambaleando, parecia bêbado, mas estava sóbrio, sabia. Olhou para o céu, talvez a posição do sol dissesse as horas. Não teve muito sucesso. Era um dia de céu com muitas nuvens, encobrindo o sol. Mas um clarão bem lateral, do lado do mar, denunciava que poderia ser de manhã. À sua volta não via nada que não fosse areia e mar. Nada ou ninguém. Forçava a vista para tentar ver alguém, mas não via nada. Seguia seus passos lentos e indecisos quando viu gaivotas sobrevoarem o mar, depois pousarem na praia. Foi quando avistou um cachorro, bem distante. Se animou e tentou apressar o passo para se aproximar do cão. Mas na tentativa de correr percebeu que estava fraco e com as pernas doloridas. Não conseguiu correr e agora não conseguia mais andar. “Será mesmo que fui atropelado?” Teve que sentar. Abaixou a cabeça e começou a chorar em silêncio. O desespero estava chegando e sua mente se tornava mais confusa.

Quando sua mãe morreu, Aldo não chorou. Sentiu-se triste, é verdade, mas não lhe desceram lágrimas. Enquanto as pessoas iam chegando para o velório e o clima evoluindo para uma atmosfera desesperadora, Aldo ficou sozinho num canto do amplo salão em que se velava o corpo de sua mãe, perdido em seus pensamentos vagos. Depois do choro e desespero as pessoas se aquietaram e até piadas se ouviam. Foi assim a madrugada inteira e o choro e o desespero reiniciaram com as cerimônias fúnebres finais e prosseguiram até o enterro. Curioso era sua irmãzinha Deise que não entendeu a situação e brincava o tempo todo, como se estivesse em um dia comum. Tinha seu próprio mundinho de criança e não saía dele por nada. Tia Maiara fez falta “e como fez”, estava no norte e não chegou a tempo para o enterro.

Caminhava procurando por um sinal ou algo familiar, ou sei lá, qualquer coisa que fizesse sentido. A vista ia até a imensidão da areia e do mar, mas não via nada. Depois, mais adiante, viu um barquinho desaparecendo na linha do horizonte. Tudo meio cinzento e azul, e o barquinho parecia azul. Ele focou no barco, um objeto familiar, preenchendo-o com a esperança de ser salvo, talvez até resgatado pelo barqueiro. Mas o barquinho sumiu no infinito do mar e com ele iam desaparecendo suas esperanças de que alguma coisa ou alguém lhe mostrasse o que se passava. Caminhava e o sol às vezes aparecia entre nuvens cinzentas, estava mais alto, indicando que já eram umas nove ou dez da manhã. Aldo parou, sentou e pensou: “que sentido fazia aquela caminhada, o que procuro?” Mas sabia que tinha de caminhar, aliás, era a única certeza que tinha naquele momento. Levantou-se e voltou a andar. As sensações mudaram, não sentia mais o corpo tão dolorido e a caminhada parecia-lhe mais suave. Embora sua mente ainda sentisse uma desconfortável desorientação, agora não era mais tão torturante quanto antes.

Muito depois da morte da mãe, Aldo, órfão de mãe e pai, perambulava pela vida, morando de favor com parentes. Começou a trabalhar muito cedo e muito cedo também aprendeu lições que a vida ensina sem o mesmo carinho dos pais. Há tempos não via sua irmãzinha Deise que ficou sob os cuidados da tia Maiara. Infelizmente ela não teve condições de ficar com os dois e Aldo sentiu profundamente.

Agora, quase um adulto, era introspectivo, sonhador e habilidoso com máquinas agrícolas. Desde cedo lhe foi confiada a condução dessas máquinas que trabalhavam dia e noite na época da colheita. Num dia qualquer de novembro, Aldo, cansado e com sono, caiu de um trator e foi atropelado. Morreu no mesmo instante e nem teve tempo de gritar.

Ao longe, antes das montanhas, entre o mar e a areia, próximo ao chão, enxergou um clarão que, de tão forte, ofuscava tudo naquele horizonte. Aldo sentia que ele deveria seguir para lá. As coisas agora pareciam fazer sentido e aquela luz forte era o objetivo. Apertou o passo. Era o fim, estaria tudo acabado e ia embora para sempre. Muita coisa teria ficado por fazer, mas nada disso importava. Finalmente compreendeu o que se passava, começou a ver e a sentir com clareza e o fim, na verdade, seria um recomeço. E Aldo desapareceu naquele clarão e nunca mais se ouviu falar nele.