Troco certo

Era a própria liberdade. Uma criatura leve e destemida. Em contrapartida, ele era também detestado por quase todos. Todos os que resistiam ao verdadeiro fascínio coberto de pelagem lustrosa e de ousadia. Abandonado, foi vítima de inúmeras crueldades somente por ser quem era. Banhos de água fria e pedradas fizeram parte do seu cotidiano desde o nascimento. Ainda assim, tinha a noite na retina e a sabedoria sob os pés resilientes. Ele simplesmente insistia, se alongava, ignorava. Numa noite de outubro, em um muro qualquer, não resistiu a uma das pedradas desferidas e tombou sozinho dentro da escuridão. A partir de então, com a sutileza fria que sempre lhe foi peculiar, passou a se alimentar de almas descuidadas, e os jovens corpos caídos sobre as calçadas esburacadas eram todos responsabilidade sua. Suas pupilas, agora dilatavam enquanto ele seguia feliz e suave, caminhando sobre pernas, cabelos emaranhados e cicatrizes.