O Último Brinde
O relógio na parede marcava 2h da manhã. O bar estava quase vazio, exceto por dois personagens que transformavam aquela madrugada em uma peça tragicômica. Atrás do balcão, Eduardo, o garçom, cruzava os braços, o rosto cheio de cansaço. Do outro lado, sentava-se Raul, o bebum habitual, que abraçava uma garrafa de conhaque como se fosse um troféu.
— Tá na hora de ir, Raul. Já deu, né? — disse Eduardo, apontando para o relógio com impaciência.
— Ir pra onde, Eduardo? Lá fora tá um gelo! E eu não tenho cama, só a calçada. Então, se não se importa, vou ficar aqui... — retrucou Raul, com a voz arrastada e um sorriso debochado.
Eduardo suspirou, mas antes que pudesse retrucar, a porta do bar se abriu, e uma figura inesperada entrou. Era Lúcia, a prostituta que costumava aparecer por ali em noites mais movimentadas. Ela sacudiu os cabelos molhados pela chuva e caminhou até o balcão, os saltos ecoando no piso de azulejo.
— Uma noite agitada, hein, garçom? — provocou Lúcia, jogando a bolsa na cadeira ao lado de Raul.
— Se por “agitada” você quer dizer insuportável, então sim — respondeu Eduardo, tentando manter o tom profissional.
Raul, no entanto, abriu um sorriso largo ao vê-la.
— Lúcia, minha musa da madrugada! Vamos beber juntos! Um cavalheiro nunca nega uma bebida a uma dama. Garçom, outra garrafa!
Eduardo hesitou. Estava cansado, sabia que isso só prolongaria sua noite, mas algo na situação – talvez a combinação de chuva, álcool e solidão – fez com que ele cedesse. Pegou outra garrafa de conhaque, colocou três copos no balcão e serviu.
— Só essa. Depois acabou — avisou, mas ninguém ouviu.
A madrugada seguiu em uma espiral de risadas, confissões e desvarios. Lúcia contou histórias engraçadas de clientes que haviam bebido além da conta. Raul relembrou seus tempos de glória como baterista de uma banda de rock de garagem, que nunca saiu da garagem. Eduardo, meio a contragosto, acabou compartilhando suas frustrações com o patrão, que o tratava como invisível.
Por volta das 4h, Lúcia, já cansada, levantou-se.
— Foi divertido, rapazes, mas tenho que ir. Vocês que se virem com a ressaca.
Ela se foi, deixando o ar carregado de perfume barato e um silêncio constrangedor. Raul olhou para Eduardo, segurando o copo.
— Ela é uma figura, né? — comentou Raul.
— Ela tem mais juízo que nós dois juntos. Vai pra casa, Raul — insistiu Eduardo, mas Raul apenas riu.
— Só se você me acompanhar.
De alguma forma, a provocação transformou-se em um desafio. Eduardo, exausto, já não via sentido em lutar contra aquilo. Pegou mais dois copos e continuou bebendo.
Quando o sol começou a nascer, os dois estavam jogados nas cadeiras, rindo de qualquer bobagem. Eduardo, que mal bebia, sentia-se leve e despreocupado pela primeira vez em meses. Raul, com os olhos semicerrados, parecia em paz.
— Sabe, Eduardo, às vezes tudo que a gente precisa é de alguém que escute nossas merdas... e de uma boa garrafa de conhaque — disse Raul, erguendo o copo num brinde.
Quando o relógio bateu meio-dia, Eduardo olhou para o celular e viu várias chamadas perdidas do chefe. Ele suspirou, mas não se mexeu. Olhou para Raul, que dormia no balcão, e pensou que, talvez, aquela fosse a melhor desculpa que ele poderia dar: Estava brindando à vida.
E que se dane o mundo que eu não me chamo Raimundo.