Fome.da.vida, sede da fuga.
Era uma tarde abafada em um vilarejo esquecido no interior, e João, um homem de meia-idade com olhar perdido, encontrava-se em uma encruzilhada que ia muito além do físico. Sentado em um banco de madeira desgastado, ele olhava à sua frente: à esquerda, um prato de comida simples, mas fumegante, com arroz, feijão e um pedaço de carne; à direita, uma garrafa de cachaça reluzente, convidativa e sedutora como uma velha conhecida.
João estava faminto. O estômago roncava tão alto que até os passarinhos no telhado pareciam incomodados. Mas a sede… ah, a sede era algo que queimava por dentro. Não era uma sede comum, mas aquela que ele carregava há anos, que parecia pedir mais pela fuga que o álcool prometia do que por água ou qualquer outra coisa.
Ele sabia o que deveria fazer. O prato de comida estava ali, esperando para nutri-lo, para dar força ao seu corpo frágil e exausto. Mas a garrafa… a garrafa era uma promessa de esquecimento, de um momento fugaz onde as dores que ele carregava poderiam desaparecer.
"Se eu comer, vou sobreviver hoje, mas as lembranças continuarão me atormentando. Se beber, pelo menos vou esquecer, mesmo que só por uma noite."
E assim, João ficou ali, congelado em seu dilema. As pessoas passavam e lançavam olhares rápidos, mas ninguém dizia nada. Todos conheciam João e sua luta diária, mas já estavam acostumados. Era mais fácil ignorar.
O sol começou a descer, tingindo o céu de laranja e vermelho. O cheiro da comida ainda pairava no ar, mas João não se mexia. Ele se lembrava das palavras de Dona Luzia, a dona do bar onde ele costumava gastar o pouco que ganhava. "A vida é feita de escolhas, João. Só não vale ficar parado, porque o tempo não espera." Mas João tinha medo de errar. Medo de não aguentar encarar a vida de estômago cheio e alma vazia.
De repente, uma criança apareceu. Era Pedro, o filho da vizinha, com seus olhos grandes e curiosos. Ele olhou para João e, sem cerimônia, perguntou:
– Por que você tá parado aí, tio João?
João suspirou.
– Tô pensando no que fazer.
– No quê?
João apontou para o prato e para a garrafa.
Pedro franziu a testa, sem entender.
– Por que não come e depois joga essa garrafa fora?
A simplicidade da pergunta atingiu João como um soco no estômago. Ele olhou para o menino, depois para a comida, e, por fim, para a garrafa. Era tão óbvio, mas ele estava preso em sua própria cabeça, incapaz de ver além do medo.
Com mãos trêmulas, João pegou o prato. A cada garfada, sentia a força voltando, não apenas ao corpo, mas também à mente. Quando terminou, levantou-se, pegou a garrafa e despejou o conteúdo no chão, sentindo o cheiro forte subir enquanto a terra o absorvia.
Pedro sorriu, satisfeito, e correu de volta para casa. João ficou ali por alguns instantes, olhando para o horizonte. O dilema parecia tão distante agora, tão pequeno diante da vastidão do mundo.
Naquela noite, João prometeu a si mesmo que nunca mais ficaria paralisado entre a fome e a fuga. Afinal, a vida era curta demais para hesitar entre o que alimenta o corpo e o que destrói a alma.