Entrega de Doces
Quando passo andando naquela rua que antes só tinha casas com moradores antigos agora vejo duas torres de prédios, me lembro da saudosa Dona Aidda, uma velhinha muito simpática. As casas antigas foram demolidas, os terrenos vendidos, a paisagem foi mudando. O bairro está tão diferente. Onde ficava a casa que ela morou hoje existem dois sobrados.
Pra mim aquela casa era intrigante e parecia enorme, era sim uma casa muito velha, num terreno grande, a porta de entrada da casa, que ficava abaixo da rua, tinha uma escada estreita e íngreme, era preciso descê-la com cuidado. Eu era uma criança pequena que passava na porta e achava engraçado ver na altura da calçada e via o dia telhado da casa. Ficava curiosa imaginando como devia ser morar ali.
Dona Aidda, distribuía saquinhos com doces para todas as crianças sempre no dia 27 de setembro. Eu só fui entender aquela tradição muitos anos depois. As crianças iam buscar os doces durante o dia todo, uma criança contava para outra e assim que voltávamos da escola fazíamos fila na calçada para pegar os saquinhos com doces . Poucas crianças me lembro, eram proibidas pelos pais de ir pegar os doces e de comer doce dado para outra criança . Não sei bem qual maldição que os pais achavam que Dona Aidda, bonachona, poderia fazer. Os doces eram gostosos, o pacotinho bem sortido, vinha com balas, doce de banana, doce de abóbora com formato de coração, um guarda-chuvinha e moedas de chocolate, os pacotinhos de papel eram todos do mesmo tamanho, mas tinham doces diferentes. Me lembro que trocava com meus colegas. Tinha criança que pegava mais de um pacote. Eu mesma ganhava sempre dois.
Dona Aidda devia levar dias preparando dezenas, talvez uma centena de pacotinhos. Essa trabalheira toda uma vez por ano era uma homenagem para Cosme e Damião de quem eu nunca tinha ouvido falar e nem imaginava que tinham virado santos da igreja católica.
Essa tradição de entregar doces foi se apagando ao mesmo tempo que as moradoras idosas do bairro foram morrendo, ou encantando-se, como diziam algumas delas. Me lembro até hoje do sabor gostoso dos doces que ganhei durante anos.
As mulheres que benziam as crianças doentes também desapareceram da nova paisagem, assim como as velhas sábias que tinham quintais enormes cheios de vasos plantas e sempre sabiam qual chá precisava ser tomado para cortar o mal-estar, conhecimento que ficou de herança dos saberes indígenas e negros ancestrais. Remédio comprado em farmácia só se tomava em último caso. Hospital era algo distante, tinha que ter acontecido um machucado grave. Tudo se tratava em casa mesmo. Primeiro a criança tomava um chá disso, um banho daquilo, ou recebia uma compressa de pano quente para melhorar, a comidinha divó arrematava os procedimentos.
O trânsito dos carros, a quantidade de gente andando nas calçadas, os prédios com muitos apartamentos, o barulho das buzinas, nada faz lembrar do bairro silencioso da minha infância, na época cheio de mulheres idosas, muitas delas viúvas, algumas com sotaque que eu não conseguia entender, e que eu soube que eram portuguesas de diferentes lugares do país e por isso cada uma falava de um jeito mais enrolado do que a outra, para mim quase impossível emtendê-lss, tinha algumas espanholas também, falantes, que gesticulação com as mãos enquanto falavam, costumavam ter sorriso largo. Essas eu entendia com mais facilidade o que diziam.
Me lembro que as velhinhas eram conversadeiras. Muitas delas adoravam crianças e eu gostava de bater papo por horas depois que voltava da escola. Os velhinhos não eram tantos e ficavam em grupo, alguns homens usavam boinas, quase todos andavam devagar e tinham o rosto marcados por rugas profundas e olhares tristes.