Papel Manchado
- Meu irmão, te digo, nunca mais dormi direito depois que achamos dinheiro antigo enterradas no quintal. Minha cabeça não para. Deito na cama e penso que penso e não consigo entender, lembro dos momentos de aperto e penso em tudo que podia ter sido feito, comprado, desfrutado, acho que nunca vou entender o motivo ou achar uma justificativa.
- Mano, veja só, não adianta você sofrer pensando no "e se"... Vamos seguir nossa vida. Eu estou conformado. Deito minha cabeça no travesseiro e lembro do que fiz no dia, e só. Fiquei chocado no dia que desenterramos as malas do quintal. Aquele espanto misturado com tristeza me derrubou. Confesso que fiquei uns dias pensativo, tristonho, imaginando tudo que poderia ter sido. Depois deixei para lá. Antes de me deitar tomo uma xícara de quente, faço minhas orações e logo estou roncando. Sei que terei muito trabalho no dia seguinte.
- Para mim nada adianta, nem apagar todas as luzes, nem chá disso ou daquilo, remédio natural, ler na cama, desligar o celular, nada faz meus olhos fecharem. O pouco que durmo não descanso, meu corpo exausto apaga por pouco tempo. Não sei se um dia vou superar o choque que foi abrir aquelas malas de couro, sujas de barro, úmidas, e encontrar aquele monte de papel desbotado, papel moeda que não vale mais nada, mas que no passado podia ter sido usado para tornar nossas vidas menos difícil. Fico tentando fazer as contas para saber o valor que nosso pai enterrou no quintal por décadas, mas a moeda mudou, tem a questão dos juros, não consigo chegar à nenhuma conclusão. Talvez aquilo que é apenas papel úmido se desmanchando, todo borrado que não serve para nada hoje, antes fossem milhões. Esse dinheiro rendendo em um banco deixaria nossa vida tranquila, talvez até a próxima geração tivesse um futuro garantido.
- Não adianta chorar pelo leite derramado dizia nossa avô. Nesse caso não adianta chorar pelo dinheiro enterrado. Nos encontramos as malas por acaso, vamos seguir nossas vidas na mesma toada de antes. É o jeito.
- Eu preferia nunca ter ido mexer na terra naquele canto do terreno. Que droga de ideia for ter construído ali uma churrasqueira, pia, um espacinho com telhado. Se eu pudesse voltar no tempo deixaria tudo como está. Agora não temos a churrasqueira e nem tenho sossego. Fico tentando lembrar se via o nosso pai no quintal, mexendo na grama, cavando a terra. Ele devia fazer isso na hora da nossa aula na escola. Não é possível.
- Eu não me lembro de ter visto nada também. Ele não gostava de cuidar de plantas, nossa mãe que adorava mexer na terra, tinha tido uma pequena horta, mas só. Por isso eu falo, vamos deixar para lá, vamos construir sim uma churrasqueira, ter um espaço para receber nossos amigos, mais pra frente, não precisa ser agora.
- Ele deve ter poupado dinheiro por muitos anos, lembro que vivíamos sempre no aperto e na maior parte do tempo ele não ganhava bem. O que será que deu na cabeça do pai de não gastar o dinheiro, nunca depositar num banco, de deixar o que era papel moeda virar um lixo que não pode nem ser vendido como dinheiro raro para colecionador. Isso seria tão bom...
- Nosso pai trabalhou a vida toda, ficou doente e não comentou nada com a gente, morreu há anos, e essas malas de dinheiro deviam continuar enterradas com a memória dele. Essa dinheirama não vale nada há muito tempo. E não temos como lucrar com essa história. Serviu sim para virar notícia no jornal, no bairro nossa rua virou ponto turístico, o que apareceu de jornalista querendo saber detalhes e tirar fotos do terreno, isso atiçou a curiosidade do povo, viramos assunto da conversa de muita gente. É o que nos resta. Temos história para contar por muitas gerações, mostrar a foto do nosso finado pai e os recortes de todos os jornais que conseguimos comprar com a foto de nosso quintal na capa.
- Nessa dureza de vida, quantas vezes escolhi qual conta eu iria pagar, sempre com saldo no vermelho, com carro velho na garagem, sem nunca imaginar que havia malas e mais malas e malas de dinheiro vivo, que só Deus sabe quando, foram enterradas aqui, bem do nosso lado.
- Meu irmão, temos em mãos dinheiro morto, essa é a verdade. Vamos trabalhar porque nossas contas precisam ser pagas e história bizarra de família, faz fama, mas não paga boleto.
- Que sofrido, meu irmão. Você tem razão .