Sem lenço nem documento

- Oi. Como vc está? Faz tanto tempo que não te vejo. Achei que você tivesse mudado daqui. Dia de feira, sacola pesada afeeee, que calor. Vem, vamos parar aqui na sombra.

- Eu estou bem. Morando na mesma casa.

- Trabalhando no mesmo lugar?

- Não. Agora trabalho remotamente. Reviso textos, trabalhos de faculdade, mestrado, essas coisas.

- Legal. Eu não tenho muita novidade pra contar. A vidinha segue na mesma toada.

- Família está bem?

- Tudo tranquilo.

- Você tem ido no Centro Cultural?

- Muito pouco. Meus horários de trabalho estão malucos. Saudade de ficar vendo o povo ensaiando coreografias ou dançando com professor enquanto tomo um café.

- Ah. Nem me fale!

- Bebeto ainda é seu vizinho?

- Não. Ele vendeu a casa. Se mudaram já faz um tempo.

- Jura! Eu não vi mais ele pelo bairro. Eu imaginei mesmo que ele tinha mudado daqui com a família.

- Vou pra casa. Tá quente demais. Foi bom te ver.

- Legal. Foi bom te encontrar. Tchau.

...

Como você está? É a pergunta de praxe. Feita por um conhecido fingindo interesse e fazendo cara blasé. Ninguém quer saber a resposta de verdade. Eu me sinto uma tonta falando com sinceridade sobre a minha vida. Como se eu quisesse justificar algo. Quem paga meus boletos sou eu, e olhe lá. Tem época que nem isso eu tô dando conta de fazer direito.

Seria bom eu responder cada dia uma coisa diferente para cada pessoa, sem medo de cair em contradição.

De acordo com a minha vontade, sem preocupação com honestidade. Daquele tipo de pessoa bem trambiqueira, que mente tanto que a cara nem arde mais. Nesse caso eu não seria uma mentirosa, apenas dona uma imaginação bastante fértil.

Depois de escutar um:

"Como você vai ? " eu poderia responder...

- Eu estou bem. Dando aula como professora contratada numa escola . Nem te conto. Peguei um quinto ano ... só com muita oração.

Ou

- Quanto tempo! O que você anda fazendo?

- Trabalhando como garçonete. Amo trabalhar à noite e dormir de dia. Sabe sou noturna, sofria muito acordando antes das 7 h da manhã. Finalmente minha familia entendeu que sou uma vampira urbana. Ganho gorjetas ótimas dos clientes. Tô trabalhando num restaurante chique perto da Av. Paulista. Lugar enorme que serve almoço e janta.

Quem sabe responder ao : "Me conta como você tem passado?"

- Estou fazendo estágio. Entrei na faculdade de Direito. Fiz transição de carreira. Não aguentava mais aquela vida. Decidi que quero ser Delegada. Sim. Desde criança é meu sonho. Acredita?!

Penso que também seria uma boa resposta para: " Faz anos que não te vejo. Me conta como vc está?"

- Eu estava viajando. Voltei semana passada. Tirei uns meses para mim, sabático, sabe. Eu precisava muito. Bem que eu queria que fosse um ano, mas o dinheiro que guardei não dá pra tanto...Não estou trabalhando. Tive um burn out, terno chique pro um troço chamado esgotamento, em bom português. Daqui um tempo vou procurar outro emprego. Por enquanto estou descansando.

E quem sabe eu poderia comentar a frase:

- "Você por aqui, não creio" dizendo:

- Ainda moro na mesma casa, mas agora trabalho do outro lado da cidade. Saio muito cedo para pegar metrô, fazer baldeação no trem... em uma empresa de consultoria da área de moda . Meu diploma de curso superior não é que serviu pra alguma coisa . Minha família me chamava de doida, pois agora me elogiam. Ano pasado fiz uma pós-graduação numa área de interesse da empresa. Nunca imaginei, mas estou amando.

Para quem questionasse : "Como você está diferente ?!" Eu rasgaria o verbo dizendo que cortei o cabelo e emagreci também. Estou correndo todo dia bem cedo, mudei toda minha alimentação. Virei o que eu mais criticava: a louca da maratona.

- Para o vizinho sem noção eu comentaria:

- Depois que teve o corte de funcionários na empresa eu resolvi dar um tempo e estudar para concurso público. Concurseira daquelas que fica focada 8 horas por dia? Sou eu. Faço tudo com muita disciplina. Vou prestando concursos até entrar num bom e daí eu vou sossegar.

Para a pergunta clássica : "Como você tem passado?"

- Estou bem, no mesmo trabalho, meio período, e agora também sou personal organaizer. Eu vou na casa das pessoas para arrumar guarda-roupa, fazer mudanças, reorganizar escritório ou biblioteca. Sempre fui sistemática de tão organizada, eu amo colocar tudo em caixas plásticas etiquetadas e agora me pagam para fazer isso.

Trabalho em casa de gente rica, casa com piscina, biblioteca, escritório, closet enorme. Outro mundo.

Manuh Danorte
Enviado por Manuh Danorte em 20/11/2024
Reeditado em 20/11/2024
Código do texto: T8201454
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