Conto Brasileiro

O aniversário de sua sobrinha seria hoje à noite – três aninhos. Bebeu um copo d’água e voltou a trancar-se no quarto, seu esconderijo de todo falatório exterior. Enquanto a maioria das pessoas era do tipo que se distraía em aventuras e interações sociais, ele permanecia isolado, sem o mínimo interesse pelo fabulário popular, acompanhado das ideias dos mortos que legaram a quem se dispusesse lê-los o verdadeiro ouro e a verdadeira prata.

-- Lúcio!

Levantou-se e abriu a porta.

-- Quê?

-- Já se arrumou? – perguntou o pai.

-- Não. Vou me arrumar.

-- Vá logo. Já tá quase na hora.

-- Tô indo – falou, e voltou a trancar-se. Ao olhar pela janela, reparou que o dia estava mais escuro. “Como o tempo passa rápido”, pensou. “Um dia desses eu ainda era uma criancinha aprendendo a andar minha bicicleta branca.”

“Lembro de quando ela ainda não sabia andar, muito menos falar – Ana. De quando vinha sorrindo me abraçar; ela ainda faz isso. Seu cabelo está crescendo rápido. Meu pai já é um senhor de 70 anos, e minha amada mãe vai com 60.”

O encontro aconteceria em um salão arrumado para tal. Seu irmão realmente era um homem endinheirado; ouvira dizer que tais lugares, para tais festas, tinham um caro aluguel, isso sem contar a arrumação e enfeitamento do ambiente. Naturalmente seria um lugar cheio de gente. Tinha vertigens só de pensar nisso; como eu disse, não gostava de gente. Mas não era só isso, o fato da multidão, ou pelo menos da multidão diante de si, causava-lhe doença, enfraquecimento dos sentidos, crises de pânico que eram contidas a muito custo.

Terminou de se arrumar e sentou-se à mesa – tinha uma mesa no quarto, pequena –, procurando no computador algum conteúdo interessante. Que difícil mineração! Acabou assistindo um clipe da Annita com o The Weekend, em que ela aparece grávida sensualizando grotescamente, falando absurdidades; além disso, há na barriga uma boca feia, que canta, transfigurando algo que seria lindo, puro, como imoral e monstruoso, dando concretude à escolha humana pela árvore da ciência do bem e do mal, onde o bem e o mal são agora aquilo que o ser-humano assim nomeia, e não o que são de fato.

“Algumas pessoas não deveriam existir, mas talvez a existência de algumas pessoas apenas revele, para quem ainda não se decidiu, que é premente escolher um lado, o mais rápido que se puder.”

Procurou por alguma notícia. Um jornalista endossava a fala do presidente Lula, em que este parabenizava o presidente Trump por sua segunda eleição. “Vemos a diferença na fala de alguém maduro, neste exemplo de Lula, pois o presidente fez o que tinha de fazer, sem picuinhas”, dissera o jornalista.

Para ter aparência de seriedade, o que em si já demonstra a sua brincadeira, parte considerável da imprensa procura vestir-se de maneira sóbria, segundo os padrões do mais típico conservador. Na verdade, até sua fala é entonação, atuação oposta do que se veria na sua vida mais real e particular. A grande maioria dos jornalistas no Brasil teve tanta ânsia de enganar o povo que, de fato, acabou apenas enganando a si mesma, falando em um vocabulário que apenas seus pares concordam; falando consigo mesma, portanto, como qualquer esquizofrênico de um hospital psiquiátrico, como todo lunático em seu surto psicótico.

“Não passam de ‘progressistas’, que de progresso não tem nada”, pensou. Olhou para fora, para a noite, voltou para si. “Os teóricos do progressismo dizem que o prazer, mais especificamente o sexual, está diretamente ligado ao ‘eu principal’ de cada um, de modo que atacar o prazer sexual de uma pessoa é, segundo essa gente, atacar o aspecto mais ‘eu’ e, portanto, um ataque frontal àquilo que há de mais essencial no ser de alguém. Estranho. O que há de mais essencial no ser de alguém é... o seu prazer sexual? Não pode estar certo. Não seria isso, ao contrário, o que há de mais superficial em uma pessoa? Sendo assim, dizem esses teóricos, não há como escapar à conclusão de que o que há de mais essencial em um ser-humano é o seu aspecto mais superficial. Bom, isso seria o mesmo que dizer que o aspecto mais essencial da Monalisa, de Da Vince, é justamente... a moldura. Só pode ser uma piada de mal gosto.”

“É o fim último do homem o prazer sexual? Que seria de mim, então, que aos 22 anos nunca tive relações sexuais? Diriam que penso assim porque não tive esse prazer, mas confundem-no com o amor em si. Outro erro. Eles não sabem o que é o amor, nem o que é a verdadeira alegria.”

Levantou-se e foi ao banheiro. Olhou o espelho. Passou um pouco de água no rosto e encarou a si mesmo. Respirou fundo. Voltou ao quarto e pegou na prateleira um livro sobre a história do Brasil. “O Brasil é rico de muitas coisas, do mal e do bem”, pensou. “Seu bem, quando visto, nunca foi visto pela humanidade; da mesma forma, seu mal. O Brasil contém em si o melhor e o pior do mundo.”

Sentou-se à cadeira, com o livro na mão. Por acaso, havia um pequeno vídeo na tela, de um grupo de capoeiristas. Clicou. Todos sorriam e balançavam a cabeça, como se quisessem, através de seus sorrisos, provar, a quem quer que assistisse, a sua felicidade – não estão vendo os sorrisos em nossas caras? “A informalidade dos brasileiros esconde a sua insegurança. O brasileiro tem medo de ser levado a sério, e de levar qualquer coisa a sério, preferindo antes a pachorra e a palhaçada. Ele nunca escolhe um lado, e se escolhe, escolhe o outro em seguida, para não ser acusado de fanático fundamentalista, seja lá o que isso signifique. Como se vê, para certas pessoas, as palavras e os gêneros são coisa fluida, nunca estática, significando mesmo o oposto do que significava antes, adequada sempre ao projeto de poder mais em voga.” Não teve tempo de começar a história.

-- Bora! – brincou o pai em voz alta.

Sempre que vai ao carro, fica Lúcio esperando que alguém o abra, puxando e repuxando a maçaneta até que finalmente o pai aperta o botão. Vai no banco atrás do motorista, onde está seu pai, ao lado da mãe, no passageiro. No banco de trás vai ele só.

O portão abiu. Saíram. Dobraram uma rua.

-- Esse trânsito... – disse o pai.

-- ... é sempre assim – anuiu a mãe, meigamente.

-- Acho que vai chover...

O exército de carros em uma rua estava estacionado no sinal vermelho, e garoava. Na rua que cortava à frente, uma moto acelerava, empinando. As luzes vermelhas dos carros chegavam a ofuscar um pouco a vista. Como seu pai era violinista respeitado nacionalmente, pôs, de Villa-Lobos, sua Bachiana Nº 5, em que uma soprano cantava lindamente. “Como é bonita essa música...”, pensava a mãe. “Meu filhinho Lúcio... É sem dúvida um rapaz muito tímido.” Nesse mesmo momento começou a chover. A voz da soprano era realmente belíssima. Nos capacetes dos motoqueiros, por suas viseiras, escorria tristemente, milagrosamente, as lágrimas da chuva na noite.

O sinal verde abriu.

***

O irmão de Lúcio era um bem-sucedido dono de academias. Seus olhos verdes eram encantadores, os quais Ana bem fizera em imitar. Vestida de bailarina, ela andava para lá e para cá, e para cá e para lá. Era muita gente, de fato. As conversas se sobressaíam umas às outras. Trovões e relâmpagos se formavam do lado de fora. Um gato preto veio esconder-se atrás de um arbusto.

A mãe, o pai e Lúcio sentaram-se em uma mesa próxima do palco, onde um homem tocava com maestria o seu violoncelo. O irmão aproximou-se e sentou na única cadeira vaga.

-- E aí, pai?... Mãe?... Até o Lúcio veio, olha só. E aí, o que estão achando?...

-- Linda festa, meu filho. Parabéns – disse a mãe.

-- Foi muito caro? – perguntou o pai.

-- Um pouco – voltou os olhos para Lúcio. – E você, Lúcio, estudando muito?

-- Sim – respondeu ele, corando.

-- O quê?

-- Literatura, filosofia... história.

-- E pros concursos?

-- Não muito. – Não estudava nada para concursos.

-- Tem que estudar, rapaz. Ou você acha que os nossos pais vão viver para sempre?

-- Vou estudar.

Não era que Lúcio não quisesse trabalhar, mas em todas as entrevistas de emprego que ia era sistematicamente dispensado. Talvez houvesse algo com seu cabelo assanhado, ou com seu olhar estranho, que essas pessoas não gostavam.

-- Viram que o Trump ganhou? – continuou o irmão. – Onde esse mundo vai parar?

-- Melhor do que aquela doida – deixou escapar o pai.

-- Até o senhor, pai? Eu não consigo entender. Como alguém vota num camarada daquele? É preciso moderação. Equilíbrio. E esse cara é um desequilibrado, um maluco!

-- Não vamos brigar por isso – disse a mãe, tentando intervir.

-- Vejam o Lula, por exemplo. Ele pode ter os seus defeitos, e tudo mais, mas foi homem. Ele é um presidente, e agiu como presidente!

O pai riu.

-- E não foi? – insistiu o irmão. – Ele parabenizou o Trump, mesmo não querendo!

Lúcio balançou a cabeça, negativamente. Não pôde não balançar. Disse:

-- Você está dizendo que o Lula... O Lula! É um bom presidente?

-- Bom, melhor do que o Bolsonaro, com certeza ele foi! E é!

Lúcio não aguentou mais. “É muita alienação”, pensou e disse:

-- Lula é um mal presidente, pois é mentiroso, corrupto e imoral. Suas ações, portanto, levam a mais mal e, por isso mesmo, devem ser detidas imediatamente. Bolsonaro, ao contrário, é um bom presidente, pois é verdadeiro, honesto e moralmente correto, como o demonstra sua aberta adesão ao cristianismo e aos ensinamentos de Cristo. Ele constantemente faz referência aos ideais cristãos, ao passo que Lula se orgulha abertamente de o STF ter agora entre seus ministros o comunista Flávio Dino. Além disso, Lula é adepto da desinformação, dizendo algo a um grupo e desdizendo a outro na reunião seguinte, quando à frente da imprensa, pro exemplo. Pois ele chamou o Trump de nazista e, agora que ele foi eleito, o parabeniza! Está parabenizando um nazista, então? É sempre esse jogo duplo, o que é típico de um corrupto como ele...

-- Alguns mais afoitos, por tentarem provar de maneira superficial que Bolsonaro não é bom, mas mal presidente, metem os pés pelas mãos dando exemplos do que seria uma sua suposta má natureza, como na vez em que ele, cansado das acusações da mídia corrupta, acabou, em um momento pandêmico (sendo mais uma vez acusado cinicamente de ser o responsável por todas as mortes), explodindo ante a malícia da imprensa e dizendo que não era coveiro. Há de se analisar a situação de acordo com o seu contexto, e não como se fosse frase solta no ar, sem nada que viesse a motivá-la.

O irmão dos olhos verdes estava prestes a dizer umas “boas verdades”, mas foi impedido pela chegada de Ana, que lhe abraçou as pernas, dizendo:

-- Oi, titio!

-- Oi – respondeu Lúcio e, olhando o irmão, perguntou à sobrinha: ¬– Tudo bem?

-- Tudo bem! – disse Ana. – Por que o senhor tá triste, papai?

-- Por nada, minha filha, por nada – e a ergueu nos braços. Os dois tinham os mesmos olhos esverdeados, puxados da mãe daqueles dois irmãos. Aliás, essa mesma mãe ficou muito feliz com a chegada da criança, que finalmente trouxe paz à mesa. Perto do fim da festa, esta mãe foi convidada ao palco, pois era cantora lírica, uma das melhores do Brasil, e cantou, acompanhada do homem com o violoncelo, aquela mesma Bachiana Nº 5, de Villa-Lobos.

Com o entoar das melodias, todos ficaram tristes, sem saber direito o porquê, e, nas suas misérias, se amaram uns aos outros. Lúcio interiormente perdoou ao irmão e lhe desejou que fosse abençoado, e da mesma maneira fizera o irmão. O irmão observou carinhosamente a Lúcio, depois olhou sua mãe, que continuava cantando. Perto do fim do espetáculo, todos os brasileiros estavam chorando.

***

Naquela noite, Lúcio teve um sonho que o marcaria para sempre – um sonho bastante simbólico.

O rei Pelé ia se encontrar com o Rei Jesus e, olhando para o Brasil, disse:

-- Fui o rei deles por muito tempo... Agora chegou a Tua vez de reinar sobre este povo – e sorriu, esperançoso.

Jesus convidou Pelé para conhecer os céus, enquanto as nuvens cobriam a cidade gloriosa. No silêncio de cada casa, milhões de brasileiros se debruçam sobre a sua própria história...