O Mangangá
Justino era muito respeitado em Pitombas. Negão alto, quase dois metros de altura, de uma pele limpa e com um brilho oleoso, um porte firme, pisava forte. E olha que os pitombeiros não eram muito de achar negro bonito, mas Justino ninguém podia negar, foi feito por Deus na forma dele que jogou no mato para que ninguém pegasse, diziam até que seus pais o fabricaram em uma hora muito boa ou então sua mãe na gravidez olhou muito para uma figura de um homem muito bonito. Não havia naquela região sujeito mais vistoso. As mulheres todas se botavam para ele, desde as mocinhas, as casadas novas, as senhoras e até velha que não se aguentava da beleza do danado. E era bonito e valente. Cabra mais corajoso que ele não existia por ali, tanto que os maridos amedrontados rezavam para Justino não conseguir nada com suas mulheres, prá elas não dar bolas para ele, porque sabiam que quem iria ficar no ora veja eram eles, pois não poderiam com o tinhoso que ficaria, como era seu costume, cantando de galo e dizendo desaforo para o desafortunado. Que nego tinha que ser macho todo mundo sabia, que nego é valente todos concordavam, tinham sustança para emprazerar uma mulher e além disso corre à boca pequena que os danados são bem providos pela natureza de coisa que mulher gosta e são destemidos porque tem o sangue quente, são fortes, não tem medo de nada. Homem que é homem tem que ser assim e ainda mais da cor preta. Os cabras quando arregalam as ventas grandes tem que sair todos de perto porque soltam fogo pelas narinas.
Pois é! Além de todas essas vantagens que Justino tinha, ainda era metido a artista e não é que o pistiado tinha uma voz boa! Carcará, que conhecia música, contava ter sido maestro em São Paulo, sabia tocar saxofone, sanfona, pandeiro, zabumba, triângulo e violão, pois bem, este velho Carcará dizia que Justino era muito inteligente, aprendeu tocar todos os instrumentos sem dar muito trabalho, parecia que já sabia quando nasceu e ainda tinha uma voz de tenor grave, provavelmente barítono. E deveras! Quando o sujeito abria o vozeirão Pitombas parava para ouvir o destinado, ainda mais que ele cantava no programa de alto falante da Prefeitura Municipal; seu serviço era anunciar e aproveitava para cantar suas músicas preferidas, até inglês era entoado.
O desgraçado foi feito por Deus como lá se diz, e ainda com sua pretitude, é por causa dela mesmo que ele é assim tão prendado. As vantagens de negro é ser forte, alto e corajoso. Se o cabra além de ser preto, o que já tem muita possibilidade de ser um cabra feio e se além de ser preto for fraco, baixo, gorducho e covarde, tá perdido. Mas se o cara, além de forte, alto, corajoso e bonito for desejável e retado, valente e artista, juntou todas as qualidades e tá com a corda toda. Vai ter todo o prestígio do mundo. Em riba do mundo não vai ter um bicho mais sortudo que ele.
E Justino transpirava vaidade, arrogava valentia, vestia-se com uma elegância invejável; a roupa que o vistoso escolhia e combinava, de qualquer jeito que fosse, caía-lhe bem; o perfume chamava a atenção, posto na medida certa, nem tão pouco que não pudesse ser sentido, nem muito que se tornasse enjoado. Seu Zezinho dizia “Êta nego lorde! É de uma lordeza! Garboso que só rei de França!” E dentro dessas roupas os olhares mais admirados era onde havia muito inchaço. "Vixe, Maria, é muita coisa! Crê em Deus Padre. Ali tem fartura!"
E as festas só prestavam quando percebiam a presença de Justino, todo mundo queria dançar com ele. O filho de uma mãe dançava como ninguém e desempenhava bem todo tipo de dança, desde o arrasta-pé do forró até o tango, o tuíste, o xaxado; era, por assim dizer, o cão chupando manga. As mulheres gostavam mesmo era de dançar com ele uma música lenta, agarradinho; sentir aquele corpo bonito juntinho delas, uma das mãos sobre os ombros, a outra nas costas, as cabeças encostadas uma na outra, e êta nois que não se morre mais! Podiam rodar todo o salão que o espaço era cedido com todo respeito para a dupla. "É Justino, oxente, abre espaço! Vai dançar assim nos inferno véio!" E Roberto Carlos, Julio Iglesias, Ângela Maria, Cauby Peixoto, Altemar Dutra, Waldick Soriano cantavam no birro.
Era a atração principal da noite, observado por todos, admirado pelas mulheres, invejado pelos homens, sentia-se a própria vaidade. E ninguém dizia que ele era o melhorzinho, porque melhorzinho era ironia que significava o contrário. Todos diziam que ele era o bom mesmo! De verdade, festa sem ele, era só um ensaio e toda festa só começava de fato quando sua presença mudava o ambiente; chegava por costume quando a coisa já ia lá pelas tantas e as pessoas nervosas começavam a ter dúvidas que iria.
E depois das festas o sujeito facilmente conseguia uma mulher para o seu regaço; quantas mocinhas aprenderam a arte de amar com o afoito; e era uma honra, contava ponto no currículo dela ter sido iniciada nessas artes da vida pelo mais cobiçado dos pitombeiros; quantas já bem ou mal amadas eram melhor ainda por ele e mesmo se não fosse tão bom assim, só o fato de ter sido com quem foi, já se fazia um prazer que não tinha sido; na conta do aproveitador, aproveitadas haviam de outros namoradas, noivas, casadas, virgens, viúvas, mães de filhos de outros e até avó; não se passava nada na frente do perigoso que ele não arregalasse; caía na rede era peixe, mijava sentada não era sapo, tinha saia e não era padre, podia se aprochegar que tinha o que queria e de uns tempos para cá, tinha até que espiar direito se não era homem vestido de mulher, porque de tais havia muito por aí e do jeito que era desejado não admirava que algum com pendores malsãos o quisesse no aproveitamento e soube que já houve quem se enganasse e só descobrisse o engodo pela diferença nunca possível de esconder à vista.
Até das redondezas as mulheres iam mode ver se sobrava para elas tirarem uma lasquinha; é sabido que as pitombeiras não largavam o osso, não davam uma pequena folga, mas havia de ser que delas ele teria de enjoar-se, fruta muito saboreada o gosto mareia e a vontade busca outras aventuras e Pitombas enchia-se de moças de Douradas, Limas, Serra Marte, Águas Fundas, Mato Santo e tudo quanto é briboca de onde poderia aparecer gente, porque gente quando quer aparecer é assim, aparece, não se sabe de onde buraco sai; dizia Seu Francisco que é do buraco humano; buraco humano, buraco desumano, o que seja. E os outros homens de despeito só não morriam porque essas coisas não matam assim de chôfre; só matam aos pouquinhos e quando vão se juntando uma a outra e os anos vão correndo, é inveja, é ódio, é raiva, desgosto nem se fala; qual pai que não fica encafifado quando sabe, percebe ou desconfia; tanto faz; que sua filhinha bem criada, muito dengosa, admoestada nos preceitos do Senhor Deus, que parecem não serem lá muito eficientes para combaterem as vontades do corpo, pois bem, essa filhinha, ficou perdida de um sujeito que parece só nasceu no mundo para mal fazer, só parece que tem o espírito de reprodutor, não aguenta ver rabo de saia e este sujeito tem é parte com o demo; bonito ninguém pode negar que é, apesar de ser preto, o que não quer dizer nada pois o Diabo, sendo o anjo Lúcifer, ser de luz, é o mais bonito e luminoso dos seres, e então é isso mesmo, o Belzebu emprestou a ele sua beleza para enfeitiçar tudo quanto é mulher; e que tristeza saber que a companheira do seu leito, mulher que tão de perto se deita, faz sua comida, lava e passa sua roupa, cuida de sua casa, sua saúde e sua doença, foi imundiçada por um sujeito sem destino daqueles, ou com muito destino, destino do cão. Coisa de feder a chapéu queimado é saber, ver ou desconfiar, tudo depende da forma como veio a percepção, ouvir então de boca destilante de fuxicos de sua mãezinha querida, mulher quase santa, só não tão santa porque não pôde resistir à tentação dessa encarnação do Exu, espírito de marinheiro, que na sua forma judaica não temeu tentar nem a Jesus Nosso Senhor, que com certeza só resistiu porque era homem, se mulher fosse e o tinhoso tivesse se apresentado na forma de Justino, preto assim mesmo e da cor que fosse, porque hoje se sabe que na terra de Nosso Senhor, como na nossa terra brasileira, gente de toda cor havia, se mulher fosse, não lograria ele resistir ao atraente moço e faria tudo que quisesse, porque mulher é sexo frágil, necessitada de amparo e carinho e todo cuidado é pouco com elas.
Galante e valente, já tinha batido em tantos quantos o afrontaram, rolo de disputa e pouco importava a Justino se a mulher queria ficar com ele ou não, se batesse o dedo teria a que preferisse, disso não cuidava, queria só passar prá trás uma e outra e pronto; agora, despeitado que viesse dizer qualquer léra, levava tapa no fucim, não levava desaforo para casa.
Manezinho, coitadinho, saiu de cabinho mucho por tirar satisfação do que tinha acontecido com sua irmãzinha; só havia os dois de sua família e queria casar direitinho sua irmã; ela se abestalhou como todas as outras, o danado pejou, largou embuchada e agora iria estar Manezinho com sua irmã solteira e tinha que criar um sobrinho, filho sem pai, com pai desgraçador de vida alheia, mandou o futuro tio calar a boca e ir trabalhar para dar comida aos três, gostou? Se não gostou coma mais pouco. Mulher se bota prá ele, querem que ele faça o quê? Ele é muito macho, faz o que é bom que coisa mió não haverá de ter no mundo. Fora isso, um bom forró, uma boa sanfona, um bom toque de viola, uma boa cachaça, uma tragada de cigarro e um bom sono na falta de todas essas coisas.
Foi perto do rio, os sapos coaxando "Meu pai foi rei!" "Foi, não foi!" "Meu pai foi rei!” “Foi, não foi!”, na síndrome do príncipe encantado cantando, em crise de identidade, sem saber se é na verdade sapo ou corpo esconderijo de príncipe à espera de uma princesa para beijar-lhe a boca e acontecer a transformação, pois deve ser muito difícil para um príncipe morrer de frio na água enquanto sua libertadora não vem; como quem está encantado parece perder a consciência de si, e se não perde fica confuso, ele canta na sua dúvida a toada e ali perto Dinair não duvidava de estar por cima dela pelo menos naquela hora não era sapo coisa nenhuma, nem nunca foi, era o príncipe encantado; podia ser o príncipe por meia hora, mas era; encantado de encantamento fazedor, Justino, comparsa na traição ao seu noivo Luisinho. Para ele dizia ser virgem, mentia dizendo querer também realizar o sonho do coitadinho de casarem-se os dois como Deus os criara. Numa aposta com um amigo, Justino afirmou conseguir tirar a honra da puritana e os sapos passaram a orquestrar o encontro fluvial dos dois uma vez por semana. A trapaça descoberta, o pai de Luisinho só não conseguiu pegar o danado porque ele foi ligeiro na capoeira, arte dominada para defesa pessoal.
Já alertado por sua tia, “Quem com muitas pedras bole, uma dá na cabeça”, o boa vida quebrava o pau no ouvido e prosseguia nas suas artes enquanto houvesse quem as quisesse compartilhar, para isso gente é que não faltava, da melhor gente. E ela dizia "Tua boniteza lhe subiu para a cabeça e fica de bonito pensando que é o mió do mundo. O mundo dá muitas vorta. Nós tudo somo iguá!".
Se já tinha comido da farofa de Maroquinha, ninguém sabe, ninguém viu, duvidar não se devia, custoso não era, que feiúra não queria dizer nada para ele, mas bonitas tinha de sobra e o tempo não dava para as feias e se desse, bom para elas. Discutindo com seu marido João, ela disse: "Feio igual tu, só o diabo, bonito é Justino, feito na forma de Deus que jogou fora, com tu aconteceu que tu pediu a Deus para ser feio e ele abusou." João botou desconfiança, andou de coçar sua cabeça mode ver se nascia o que touro tem de sobra, cismou de voltar costumadamente prá casa horas não esperadas, quisesse Deus tal desgraça não estar acontecendo com ele, mas pelo sim, pelo não tinha que descobrir um meio de afastar o garanhão de sua mulherzinha; de certo que ela já se admirou por ele, porque as palavras quando saem na boca vem do fruto de um coração cheio; coração e corpo também, em sendo só coração poderia estar até mais sossegado, mas em sendo de igual modo corpo, o trem ruim toma conta, domina e leva pro mal.
Raiva maior fez Justino a Pedro Mão de Vaca. Vivendo e fanfando de fazer rôlo, o presenciado comprava, vendia e trocava tudo que fosse objeto; passava bicicleta, relógio, pulseira, carro, cavalo, burro, vaca, cabrita, jegue, o que fosse. Visse alguma coisa bonita e boa, logo propunha negócio; esperteza tinha de se ter, porque no mais das vezes, quem por muito pelejar fechava o rôlo, saía perdendo. Pedro Mão de Vaca apareceu com uma bicicleta novinha e muito boa, leve que só uma pena e o injusto com nome antônimo; o pai devia de tá variando quando o batizou, e o efeito da vontade do velho pegou ao contrário; e então o cabra botou olho, curtiu, curtiu, conversou, papeou, tanto aborreceu que Mão de Vaca resolveu trocar sua bicicletinha num novilho, que não valia nem a metade do veículo. Suportar, não suportava Pedro perder qualquer bem, nem dinheiro, muito menos ser passado para trás. O Cão é que vive de muito mentir e enganar, roubando os outros, mais parecia ter parte com o demo o negociador, diziam até que sua tia sabia fazer lesar as vistas de quem quer que fosse, sendo homem para negócios e mulher para acoitamento, mesmo porque ninguém pegava o tinhoso, quando era procurado por alguma arte, sumia tão ligeiro, parecendo envultar e quando necessitava ser visto pelas mulheres desejosas, aparecia e chamava toda a atenção.
Ednésio tinha chegado na cidade com sua mulher saítica. Jerusinha era um foguinho só! Quando o povo viu o jeitinho alegrinho da esposinha do novo gerente do Banco do Brasil já logo previu o futurinho maravilhosinho da danadinha. O marido a apresentar para todos: “É Jerusinha, minha esposinha!” E o povo como a adivinhar e desejar: “Pois sim, é Jerusinha, vossa esposinha!” “E então, moço, Jerusinha vossa esposinha é um amorzinho de mulherzinha!” “‘É, tão bonitinha!” “Vai gostar muito de nossa cidadinha!”.
Justino estava estrategicamente escondido, não apareceu para as apresentações e foi muito bem informado sobre Jerusinha; carne nova no pedaço, gente diferente vinda de Feira de Santana, gente boa e parece, pelo jeito descrito, fogosa o bastante para facilitar seu assédio.
À tardinha, quase à boquinha da noite, a bicicleta ex-Mão de Vaca vinha sendo pedalada pelo novo dono em frente à casa de moradia do novo casal chegante e eram muitas voltas prá lá e prá cá e antes da dona da casa sair para ver o passeio e o passeador, as vizinhas, os vizinhos e seus filhos nas janelas observavam as artimanhas do destemperado. “Procurando sarna prá si coçar!” “Mexendo em casa de maribondo!” “Mas óia, isso não é coisa do Diabo!” “Não respeita nem quem chega de fora!” .
O esperado não aconteceu, Jerusinha não saiu de casa, não foi à porta, nem deu uma olhadela pela janela, estava envolvida com as arrumações da nova casa; um móvel não ficou bem em um lugar, muda para o outro, bota a cortina ali, fura a parede aqui, esse quadro fica melhor neste canto, ai o banheiro tá precisando acertar o encanamento, o espelho - acho que ficou legal. “Meu Deus, mudança é tão desgastante!” “Dá um trabalho danado!” .
Quem anunciou o reberamento de Justino foi Lôzinha, mocinha que já tinha sido contratada como empregada doméstica de Jerusinha, que espantada e orgulhosa, retrucou: “É o quê! Mas não acredito nisto! Quem ele pensa que é? O único macho do mundo!” “Óia D. Jerusinha, o único não é, mais é o mió de todos!” “Oxente, Oxente, vai procurar o que fazer menina, tu parece que não sabe o que é homem bonito! E mesmo assim, se for essas belezas todas, eu tenho meu marido; era só o que me faltava, que falta de respeito!”. Mesmo sendo mulher honrada, a senhora despertou curiosidade; ficou de butuca no dia seguinte para ver o festejado, mas não se deu de avistada; escondida em uma frestinha da janela e mortezinha do dia, lá passava a bicicleta e pedalando-a uma beleza de homem, digno de um modelo, seria um ator de beleza atraente por demais. Mas vá lá, o sujeito de tanto ser adorado naquele lugarejo já se achava tomado pela super-estimação e quase um semideus, pensava que qualquer mulher cairia a seus pés como enfeitiçada e... felizarda. Pois sim, com ela eram outros quinhentos; chegada há pouco, deveria se dar ao respeito e fazer-se respeitada. Na presença do sedutor não tomaria nem conhecimento dele, nem olharia; de sexo não necessitava tanto, seu esposo a satisfazia muito bem e até demais, ela é que não o satisfazia, tinha certeza; beleza de homem já tinha contemplado outras; teria que preservar seu casamento, amava o esposo e era-lhe fiel; não seria nenhum maníaco sexual qualquer que transformaria toda a sua vidinha.
E Justino enlouqueceu com a cerreia da miudinha; não dava as horas para ele. Não adiantava inventar polodochio, chamar a atenção, esmerar-se na presenciação; quase gastou todo seu dinheiro na compra de roupas bonitas. Já ficava com outras mulheres com o pensamento voando por Jerusinha. Bem sua tia tinha falado, perecia que esta pedra estava dando na sua cabeça. Boa idéia! Bem lembrado! Tia Minervina deveria conhecer algo que pudesse ajudá-lo a conquistar aquela mulher difícil. Se dava ao trabalho de viver de receitar ervas; procuravam-na para curar quebranto, mau olhado, olho gordo, perder filhos indesejados. De certo que Siá Minervina não gostava muito de matar gente no bucho, contudo todas as abortantes diziam de pronto que ela estaria desfazendo o mal que seu sobrinho fizera; sabia também que Justino levava muita fama sem proveito, macho ali não era só ele e seu sobrinho era um só prá dar conta de todas as pejadas, porém nem suas adivinhações diziam quem estava falando a verdade e pelo sim, pelo não, fornecia as ervas a todas. Na casa dela chegavam mulheres enganadas que saíam instruídas para fazer os maridos tomarem susto pela falta de animação total; saíam moças ensinadas a pegar rapazes indiferentes às suas graças; apareceu até homem bem na noitona adentro para reavivar órgãos quase mortos.
“Já disse prá tu, essa pedra deu na tua cabeça. Mas o que eu vejo aqui pelos meus búzios é que se tu deixar isso quieto é mió. Essa muié tá mandada para desfazer tua fama e é mió tu deixar isso prá lá que vorta tudo ao normal. Agora se tu quer por causa da tua vaidade conquistar essa muié, eu vejo um mangangá! Prá ôcê conquistar essa tá de Jerusinha, tu tem que enfrentar o mangangá.”
“Então, acho que vou desistir disso. Tem muitas outras mulheres menos complicadas.”
“Mas agora já tá determinado! O mangangá vai te reberar, te aterrorizar, tu tem que tomar cuidado prá ele não te morder!”
“Tia, não dá prá desfazer esse negócio?”
“Tu tem esse medo todo desse bicho? Pois tá scrito, foi ficar tucaiano essa forasteira, a força da reação dela chamou o mangangá. E eu só posso fazer uma coisa...”
E fez: pegou muito mangalô, cozinhou, misturou com brêdo e hortelã miúda; fez uma cachaça das brabas, mistura de álcool, tapioca e milho com jurubeba e preparou um bom cigarro zabumba. Justino, nu diante da tia, a única mulher de quem tinha vergonha de assim mostrar-se, ela tratando dos encantamentos compenetrada de sua missão, dava banho de ervas aromáticas com defumadores e incenso. De toda essa besuntação o de corpo fechado gostou foi deveras da comida, muito mangalô misturado com andu, feijão de corda, azeite de dendê, banana da terra frita e o brêdo, tomou umas talagadas de cachaça desenterrada e estava protegido da força negativa do mangangá. O que sua tia não teve poder foi de afastar dele o inseto. Prá que foi bulir com essa mulher! Se adivinhasse estava atiçando esse bicho nem prá cara da dificultosa tinha olhado, óia que não arrebanhou nada e só teve azar.
Dia seguinte não pôs os pés na rua mas não adiantou, já no pôr do sol ouviu o som, fechou depressa a janela e o coração parecia querer voar por sob o peito, o mangangá veio até ele. Mas será o Benedito? Não é que a pequenininha chamou o besourão! E novamente..."Zuum" "Zuum" . “Ai, Meu Deus do Céu! Protejei-me. É coisa do tinhoso. Fechei a janela o mais depressa possível e o danado ainda conseguiu entrar dentro de casa. E olha lá, lá em cima está ele! Abriu as asas e lá vem, esse besouro preto enorme!”. Já ia saindo em carreira dasabalada quando Siá Minervina com seu cigarro zabumba soprou sobre ele e o bicho bateu na janela, encontrou certeiro uma fresta e desapareceu. Suava, não conseguia vencer o único medo de sua vida. Era melhor ter medo de gente! Mas daquele inseto!
Esperava ansioso a aparição insetóide e ela não veio mais, também evitava passar perto de pé de mangalô. O que apareceu foi Jerusinha e ele por sua vez parecia querer dar o troco da indiferença, na verdade tinha medo do mangangá, não dava confiança a ela. Ela soube do costumado banho da tarde nas águas alvinhas do rio e sentiu necessidade de banhar-se, refrescar-se no frio gostoso e apreciar o corpo seminu, insinuar-se, mostrar o corpo ainda jovem no seu maiô costumeiro dos veraneios em Cabo Sul.
Um dia à beira do riacho ouviu da impertinente que seu marido havia mudado, não comparecia mais como antes, parecia estar trabalhando demais, não chegava em casa mais tão animado e aquela cidade era tão quente, seu sangue estava fervendo de calor; seus pés dentro dágua e a saia subindo; o anti-mangangeiro não resistiu, se danasse marido, inseto, medo, o que fosse e as águas do riacho lavava o suor, o atrito, os beijos e toda a sujeira ou limpeza subsequente. Parecia aquela planta "comigo ninguém pode", não é que Jerusinha provou da cobiça das mulheres! Agora não restava mais nenhuma das que quisera!
E resistência e hesitação tornaram-se características de quem antes era destemido. O besouro evocou os medos potenciais. É que agora bulia com gente poderosa! Mulher de homem de posição alta! Arriscava vida e liberdade. Poderia parar no cemitério ou na cadeia.
Acontece que das que o queriam restavam muitas e Lôzinha ouviu interessada o segredar de sua patroinha e aproveitou para conseguir seu desejo: "Sei que você e D. Jerusinha... "Tu não conta isso prá ninguém!" "Não, não vou contar se você me ajudar a ficar calada" "Não acredito que você está querendo..." "Não sou tão feia assim! Sou?" Não, não era. Até que era jeitosinha, dava para encarar e o chantageado não titubeou, pagou-lhe o preço exigido. Depois a empregada revelou-lhe que conheceu com ele um dos melhores homens prá cama, o outro era seu patrão. Justino não acreditou, então traía o homem duas vezes, com a esposa e com a amante e teve que continuar traindo porque as duas o procuravam e a segunda chantageava ele e ela; contou para a patroa que tinha seu patrão e o amante dela e prometeu estragar a festa se ela a demitisse ou tentasse interferir no relacionamento da empregada com um dos dois; sociedade absoluta.
Justino estava doido, não sabia o que fazer e aí o mangangá apareceu na presença de Luisinho e vôou, reberou, zuou, bateu suas asas negras nele, fez todo o terror que se poderia fazer e o cabra enloqueceu, bateu com as mãos, pulou, correu e o danado tava com o diabo, não largava dele. Luisinho só ria, então este sujeito tinha medo de alguma coisa, de certo que ele tinha de ter alguma fraqueza, não poderia ser assim tão invulnerável! Mas ter medo de um mangangá! O riso foi excessivo, todos iriam saber. Manezinho iria ficar tranquilo, não seria mais ameaçado na sua família, Mão de Vaca se vingaria do enrolão e Joãozinho não necessitava temer as galhas. Um homem que tem medo de um besouro não alcança mais respeito nenhum em Pitombas e nem uma mulher ia querer se deitar mais com ele.
Quando se livrou do besouro, viu perto dele Ednésio, ao deparar-se com o duplamente enfeitado, gelou; estranho, sua coragem desapareceu, bateu asas e voou. Não era mais destemido. Mas tudo demais também é sobra, possuía as duas mulheres do cara. O que queria?!
Juntou todos os seus pertences, pegou o primeiro ônibus para São Paulo e tomou a estrada. Seus olhos derretiam-se em lágrimas. Acabou seu reinado, jamais pensou em sair de Pitombas. Deixou ali toda a sua vida, sua glória. O automóvel sumia na estradona sem fim, o futuro incerto, as lembranças, as recordações, a saudade.
O que Justino não sabia é que cinco anos depois seria um dos primeiros galãs negros da televisão, considerado um dos melhores atores, um dos homens mais bonitos do Brasil e uma das vozes mais sonoras, mais inebriantes e teria na sua cama as mulheres mais ricas, mais belas e mais interessantes do mundo.
As forças ancestrais continuaram trabalhadas pela tia Minervina, já com um enorme terreiro e muitíssimo respeitada na megalópole. O mangangá aparecia nos sonhos do sobrinho todas as vezes que tinha um grande desafio e conseguia sair-se bem de qualquer empreitada.
Rodison Roberto Santos
São Paulo, 1997