O último café
A fumaça dançava véu. Eram linhas de história, como as de suas mãos. O café, sua companhia na solidão, aspergia aroma de lembranças.
Distraiu-se com o espetáculo das bolhas explodindo no pó escuro. Surgiam e desapareciam como os instantes da vida.
Abandonou as ideias para voltar aos afazeres. Tirou do armário duas xícaras de porcelana, pires prateados e um bule ornamentado com uma folha dourada. Objetos usados apenas em ocasiões especiais.
Foi ao quarto e buscou, num cantinho pouco visitado do guarda-roupas, uma toalha de crochê. Voltou à cozinha, limpou a mesa e a forrou. Melhorou a decoração com um vaso com uma rosa amarela.
Da geladeira, tirou um pequeno bolo de coco, comprado na véspera, e o ajeitou sobre a mesa. Cheirava bem. Mistura gostosa com outros odores: manhã, flor e café.
Duas velas, nas formas de “zero” e “seis”, aguardavam, ansiosas, aquele momento. Estavam seguras, enroladas em um lenço perfumado, no fundo da gaveta do armário da cozinha. Foram compradas há mais de mês, especialmente para aquele dia. Fincou as velas no bolo e se permitiu uma garoa.
Buscou fotos na gaveta da estante. Sentou-se, por fim, e olhou as fotos. Abraços, beijos, sorrisos, brincadeiras, viagens, festas, danças, lágrimas, hospital... Duas vidas pela metade em uma vida completa.
A vida foi longa e feliz. Realizou alguns sonhos, abandonou outros. A maternidade, um dos sonhos, foi adiada até ser deixada na estrada do passado. Sua família era o marido. Amou e foi amada, rara reciprocidade.
Durante quase seis décadas, o casal resnacia na simplicidade das manhãs: café quente e forte, beijos e olhares. Tiveram momentos tristes, mas até nesses momentos, a tristeza lhes sorriu.
A morte, no entanto, é indiferente a felizes e a infelizes. Vestiu-se de câncer e, numa noite chuvosa do último dezembro, matou todas as manhãs seguintes. Faltava um mês para o sexagésimo aniversário de casamento.
Secou as lágrimas e deixou o álbum sobre a mesa. Acendeu as velas e, com vergonha de ninguém, melodiou parabéns desafinado com palmas sem som. Cortou o bolo. Despejou café nas duas xícaras.
A calma da manhã a abraçou em felicitações pelas bodas de diamante.
Na outra cadeira, estava o marido. Parecia maior que a morte. Naquela paz matinal, o café lhe tocou os lábios e ela sentiu um beijo doce. O coração palpitou a serenidade da ausência. Sussurrou “eu te amo”. O silêncio lhe respondeu “eu também te amo”.
De olhos fechados, viu dentro de si o marido se levantar da cadeira. Ele estendeu o braço, convidando-a para uma dança. Ela sorriu. Os dois se abra-çaram e dançaram a música de suas vidas.
Continuaram dançando num lindo jardim. Pétalas de rosa caíam como folhas de outono. Ela e o marido seriam eternos.
Na casa, restou o mais profundo silêncio, a canção peculiar da morte. Nas xícaras, o café esfriou à espera de quem jamais voltaria.