A Bisa
Naquele sábado fiquei no quintal brincando com meus primos e primas e uns amigos da rua. Era um monte de criança fazendo barulho naquele espaço enorme. Brincamos de bola, corremos bastante, os cachorros corriam atrás da gente e latiam, eram dois, o Pettí, preto rebaixadinho, e o Gigante, caramelo, o nome dá dica do tamanho do bicho, que tinham aparecido na rua, um de cada vez, e acabaram ganhando um lar. Todos gostavam de animais em casa e acolhiam qualquer um que poderia estar sendo procurado pelo dono. Nunca faltava um pote de água e comida para eles. Esses dois tinham sido abandonados, pelo jeito, pois ninguém os procurou.
A minha família era bem grande. Meus dois primos tinham levado as bicicleta deles para minha casa. A correria misturada com futebol, revezamento da bicicleta, apresentação musical e a cachorrada participando da farra deixou nossa manhã bem animada. Eu lembro que ri bastante, corri, me cansei, suei, fui levantar um amigo que caiu no chão e chorou muito, por isso levei bronca da Tita a única adulta por ali. Com o fim das lágrimas do Abel voltamos para o jogo. Não era nada grave, disse a Tita olhando sério para mim. Ela ia em casa para fazer limpeza toda segunda-feira. Não me dei conta que ela nunca tinha ido de sábado. Naquela época eu era filho único, minha irmã nasceu depois.
- Tita preparou suco e um lanche daqueles e chamou todos para comerem, seria nosso almoço, contou ela. Eu, meus amigos e toda primaida estávamos esfomeados. Depois de descansar um pouco pudemos voltar a brincar. A Tita falou que comer e logo sair correndo fazia mal. Nós obedecemos, não tinha outro jeito. Os cachorros também foram comer e beber água. Tita tinha feito uma papa misturada com carne moída que tinha um cheiro muito bom, comida de cachorro, disse ela, eles devoraram, os potes ficaram brilhando.
Não sei dizer que horas que os adultos voltaram para casa. Ouvimos o barulho dos carros estacionando na rua. Meus pais, minhas avós, meus tios e tias, e os pais dos meus amigos e vizinhos chegaram todos ao mesmo tempo, era de tarde, o sol não estava tão quente. A brincadeira acabou nesse momento. Nessa hora ninguém falou nada, mas cada criança entendeu que deveria voltar para casa. Antes disso jogamos Uno, todo mundo andou de bicicleta de novo, as meninas e os meninos fizeram grupos, cantaram e dançaram.
Minha mãe chegou com cara inchada, olhos e nariz vermelhos, disse oi para mim e foi para o quarto, ela estava cansada e pediu para eu assistir televisão sem fazer muito barulho. O banho, só hoje, ela avisou, eu tomaria antes de ir dormir. Minhas duas avós pareciam sérias. Entraram quietas e cada uma foi para um canto. A casa ainda não tinha sido reformada, era grande, a sala enorme, com vários quartos e tinha ainda o quintal onde cabiam os carros, as casinhas dos dois cachorros, e lá na frente um jardim.
Meu pai não estava falante. Ele recebeu alguns abraços dos vizinhos e entrou calado. Poxa, não era aniversário dele e eu fiquei pensando que todos estavam diferentes. Meu pai era risonho e só ganhava abraços no dia do seu aniversário.
A minha bisavó, muito velinha, e eu sabia estava internada no hospital. Minha mãe se revezou com minha avó para ficar com ela. Aprendi a palavra Revezou no dia que minha mãe chegou tarde em casa e conversou comigo. Ela me contou que ira revezar também com irmãs dela para ir ficar um tempo com a Bisa no hospital.
O resto daquele dia não teve nada demais. A Tita foi embora, mas antes deixou mais lanches prontos e suco na geladeira . Eu vi uns filmes na tv , não fiz bagunça e só tomei banho antes de dormir. Adorei.
No outro dia o café da manhã foi rápido e não teve aquela macarronada que a Nona fazia todo domingo. Me lembro que o cheiro do molho de tomate dela perfumava a casa. Dessa vez não tinha música, ninguém ligou o rádio, não tinha o cheiro bom da comida pelo ar e nem o falatório que tomava conta da cozinha e da sala antes do almoço. Alguém preparou arroz e pegou umas coisas que estavam na geladeira. Eles disseram que estavam sem fome, era mais ou menos meio dia e eu almocei um pratão.
Mais tarde ouvi minha mãe chorando baixinho e fui perguntar se ela estava bem. Ela se sentou na poltrona da sala, me deu um abraço bem forte e disse que ela iria ficar bem e que outro dia conversava comigo porque ela não estava pronta para falar. Fiquei pensando que ela podia estar doente, me deu medo, ouvir que ela "não estar pronta para falar"? . Meu pai ficou só olhando para a gente. Ele pediu para eu assistir tv com volume baixo e avisou que eu não poderia brincar com as crianças no quintal, não teríamos visita porque não era hora de fazer arruaça, que eu brincasse com os cachorros, mas sem os provocar para que não latissem muito.
- Nunca mais comi uma comida tão gostosa como da Nona. Os domingos passaram a ser dias mornos e os sábados quietos, sem graça. A casa não tinha monte de gente como antes, eu não ouvia as gargalhadas, os almoços não duravam horas com aquele falatório e o barulho de pratos, copos e garfos batendo, ninguém derrubava nada na toalha da mesa, o suco estava na jarra de vidro, as panelas sobre o fogão, as coisas nos seus lugares, não tinha mais a minha sobremesa preferida. Cada dia parecia se esticar, a hora era mais lenta e os dias ficaram longos.
O quarto onde a Bisa dormia passou a ficar com a porta fechada.
Na mesa eu percebi que colocavam um prato a menos, durante as refeições quase não se conversava e por isso não perguntei nada. Como nos desenhos animados eu achava que uma nuvem cinza, enorme, tinha estacionado bem encima a minha casa que vivia dias nublados. As visitas apareciam cada vez menos, os vizinhos agora ficavam em suas casas e eu era chamado para brincar no quintal deles.
Faz algum tempo que me lembrei naquele sábado todos que chegaram da rua usavam roupas pretas.
Como ninguém levava criança junto quando era assunto de adulto eu demorei um pouco para entender o que tinha acontecido na minha família.