A TEMPESTADE E A CANÇÃO - Conto histórico
A TEMPESTADE E A CANÇÃO
Nova Iorque – ano de 1874
Lentamente a senhora volta os olhos ao papel em branco em cima da mesa. Tinha uma tarefa a cumprir. Contudo, seus olhos teimam em verter abundantes lágrimas, que caem, teimosas, pelo seu rosto sofrido, chegando à sua blusa simples, surrada pelo uso. Seu pensamento divaga, tristemente, lembrando de sua perda recente: o irmão James, tão amoroso, tão gentil, tinha partido há poucos meses – não resistiu à tuberculose. Mais uma perda na sua vida.
Olhou para fora através da janela larga que mostrava a rua movimentada e agitada; a razão era por ser domingo, quando as pessoas costumavam se reunir com parentes e amigos, com almoços duradouros, logo após frequentarem a reunião nas respectivas igrejas. Naquele momento, lembrava que seus filhos não se encontravam em casa, pois estavam na residência de conhecidos do bairro. Estava apreciando aquele silêncio naquela tarde em que se dispôs a dedicar a uma das atividades de que tanto gostava – escrever poesia. Seu esposo Nelson veio do quarto, depois de pausar a leitura da revista de estudos bíblicos e perguntou:
- Conseguiu chegar na metade?
- Ainda não iniciei. – respondeu, chorosa.
Só então ele percebeu o pranto discreto da esposa, mais uma vez lamentando a saudade do cunhado. – Minha querida, Deus sempre traz o consolo quando precisamos. Ele está agora aqui, contemplando sua dor.
Ela e a irmã Ruth ficaram órfãs ainda em tenra idade, pois os pais sucumbiram àquela doença tão grave na época, também conhecida por tísica. Foi um período turbulento, com privações e incertezas, mesmo assim conseguiram ter o apoio dos parentes mais chegados e os amigos da congregação batista que frequentavam desde a infância. Ainda tinha na mente o hábito de sair de mãos dadas com Ruth, de lacinhos nas tranças e vestidinhos com estampas florais, sorridentes e saltitantes para ouvir as histórias bíblicas na Escola Dominical.
Tais recordações a fizeram suspirar: a fé ensinada estava entranhada nos corações daquelas garotas, de tal maneira, que elas se entregaram de corpo e alma ao evangelho arraigado em seus pais. A perseverança, o amor e a piedade eram vivenciadas em seu lar diariamente e, desta forma, já na juventude sabiam que as decisões deviam se basear na crença de dias melhores. Pensando assim, concordaram em juntar os parcos recursos para enviar James à Flórida, na esperança de que ele melhorasse, passando alguns dias numa região de clima mais ameno.
As duas não puderam estar lá, não acompanharam o irmão nos seus últimos dias, não estiveram no enterro, nem conseguiram os valores para o transporte do corpo para Chicago. Embora o choro viesse em abundância, Mary Ann sabia que não podia se descontrolar, ela tinha certeza do consolo divino. Entretanto, foi uma experiência assoladora, ela se sentia tão desanimada, tão só, tão rebelde contra os desígnios do Criador... repetia sem parar que Deus não a amava, nem amava seus queridos pais e irmãos.
Naquela época, Nelson fez o que podia para confortar Mary, porém ela estava devastada, de tal maneira, que parecia não querer ouvi-lo; isso pesava no seu coração intensamente. Conhecia a esposa e sabia que era uma fase espinhosa, mas que iria passar. Com carinho, achegou-se a ela: - Desde que conheci você, testemunhei sua fé inabalável. Tenho convicção de que o Poderoso irá tratar suas dores e trará a resposta às perguntas que tem agora. Mary Ann apenas esboçou um sorriso suave e pediu: - Você pode me trazer um chá, por favor? O marido assentiu, após deixar um beijo em seus cabelos.
O sol lá fora brilhava como sempre, os pássaros permaneciam com seu canto, as flores continuavam a colorir os caminhos. Sentiu seu coração se aquecer, permitiu-se entregar à paz terna e revigorante vinda da alma como um sopro forte, ela possuía algo valioso dentro de si e não podia negar: um dom, algo especial que a fazia traduzir em palavras, que se uniam em frases e manifestavam-se em poesia.
Ela ajeitou-se na cadeira, respirou profundamente e, enchendo-se de coragem e determinação, iniciou a missão dada a ela pelo pastor Palmer de compor uma canção! Não poderia jamais esquecer a conversa de dias atrás:
- Irmã Mary Ann, tenho sido testemunha do esforço e da entrega ao serviço para esta comunidade há muitos anos. Reconheço que tem sido difícil a jornada nos últimos meses para sua família, mas sei também que temos um Deus que cura a alma ferida e ampara os Seus filhos. Tenho certeza de que a irmã possui uma força tão grande que vai ter condições de realizar algo que estou sentindo no meu interior há alguns dias, precisamos de hinos para nossa Escola Dominical e creio que você tem o talento para compor vários. Pense nisso.
- Pastor Palmer, nosso Mestre conhece meu coração. Agora...
- Eu pensei que um bloco de hinos a respeito do conteúdo das lições ia ser um grande auxílio no ensino. – ele a interrompeu.
- Pastor, não sei se consigo. – Mary titubeou.
- Apenas reflita sobre o que eu disse, é o que eu peço nesse momento. – o líder insistiu.
- Tudo bem, pastor. - Ela não conseguiu continuar o diálogo. Não compreendia como aquele senhor, que era um musicista tão talentoso, estava tendo uma ideia dessas para ela, que estava passando por um luto... Recordava-se de um desses temas sendo “Cristo acalmando a tempestade”.
Tinha suportado um mar revolto, ondas fatigantes, ventos massacrantes, eventos indeléveis, profundos; porém, apesar da fúria das águas, não submergiu. O Pai Amado em quem sempre creu estava dando forças para que ela tirasse do seu lamento uma música, que refletisse sua crença, seu aprendizado e sua resistência aos embates da vida.
E assim surgiu a letra de “Master, the tempest is raging” (Ó Mestre, o mar se revolta), a qual teve a melodia composta pelo Dr. Horatio Palmer. O hino foi publicado no mesmo ano na coletânea “Songs of Love for the Bible School” (Cânticos de amor para a Escola Bíblica). Difundido pelos Estados Unidos, tornando-se tão querido, que foi usado nos cerimoniais do funeral do presidente Garfield, em 1881, ano do falecimento de Mary Ann.
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O mundo conheceria a letra dessa bela música na publicação de “Sacred songs and Solos” (Cânticos e Solos sagrados); a partir dessa coletânea, o missionário William Edwin Entzminger fez a tradução para o português em 1903, incluindo-o no Hinário Cantor Cristão.
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Ó, Mestre! O mar se revolta
As ondas nos dão pavor
O céu se reveste de trevas
Não temos um salvador!
Não se te dá que morramos?
Podes assim dormir
Se a cada momento nos vemos
Sim, prestes a submergir?
As ondas atendem ao meu mandar
Sossegai!
Seja o encapelado mar
A ira dos homens, o gênio do mal
Tais águas não podem a nau tragar
Que leva o Senhor, rei do céu e mar
Pois todos ouvem o meu mandar
Sossegai! Sossegai!
Convosco estou para vos salvar
Sim, sossegai!
Mestre, na minha tristeza
Estou quase a sucumbir
A dor que perturba minha alma
Oh, peço-te: Vem banir
De ondas do mal que me encobrem
Quem me fará sair?
Pereço sem ti, oh, meu mestre
Vem logo, vem me acudir!
As ondas atendem ao meu mandar
Sossegai!
Seja o encapelado mar
A ira dos homens, o gênio do mal
Tais águas não podem a nau tragar
Que leva o Senhor, rei do céu e mar
Pois todos ouvem o meu mandar
Sossegai! Sossegai!
Convosco estou para vos salvar
Sim, sossegai!
Mestre, chegou a bonança
Em paz eis o céu e o mar!
O meu coração goza calma
Que não poderá findar
Fica comigo, ó meu mestre
Dono da terra e céu
E assim chegarei bem seguro
Ao porto, destino meu
Obs.: Este conto foi originalmente publicado na coletânea "Fragmentos Históricos", edição 6