Tormento
Nunca mais dormi tranquilo uma noite inteira depois daquele dia.
Eu sabia que alguém queria meu mal. Uma pessoa teve coragem de passar tarde da noite na porta da minha casa e jogar aquela coisa dentro do meu portão.
Não saber quem aparece nas imagens das câmeras consome meu juízo, meu cérebro fica igualzinho um produto limpa forno enquanto derretoe a gordura. Dá para ver alguém nas imagens gravadas da câmera da rua, uma pessoa que passa devagar usando uma roupa escura, talvez toda preta, uma jaqueta bem larga, e usando capuz tampando todo rosto que chega bem perto do portão, mas não tenho como dizer se era um homem ou uma mulher. Estava frio e um vento gelado e uma chuva final naquela noite empurravam todo mundo para dentro de casa.
Eu havia discutido com o Lino no serviço uns dias antes. Cara chato, mas também não posso afirmar que foi ele. Funcionário antigo ele é teimoso, mas competente. Não o demiti ainda por isso. O outro gerente queria promovê-lo, ele seria transferido de setor, fui contra. Indiquei um outro funcionário para o cargo, menos encrenqueiro, mais pacífico.
Ter encontrado um pequeno boneco de pano parecido comigo, pele branca, com cabelo ralo puxado para trás e entradas no cabelo , bigode, óculos, calça jeans, relógio no pulso direito, e camisa social branca, com um cinto preto na cintura, sapatos pretos, exatamente o tipo de roupa que costumo usar, tudo milimetricamente pensado e executado por quem deve entender tudo de costura, uma riqueza de detalhes que me assombrou, me causando tremedeira.
Na cabeça, nos olhos, no coração, na área genital, nos joelhos e nos pés muitas agulhas finas estavam calculadamente espetadas. Senti vontade de gritar quando avistei o feitiço, mas a voz não saiu, fui tirar o carro da garagem para sair para trabalhar mas fiquei paralisado, me escorei no portão por alguns segundos, me faltaram forças. Eu sou o que acordo mais cedo em casa, então, ninguém tida saído ainda, eu infelizmente dei de cara com aquele boneco de tecido, aquela miniatura de mim, detalhada e pavorosa.
Peguei uma caixa de papelão vazia que eu tinha e com cuidado, usando uma pá de lixo, recolhi aquilo. Levei a caixa bem fechada até a esquina e a coloquei dentro de uma lixeira de rua daquelas grandes, que fica na porta do prédio vizinho. Eu tinha pavor da ideia de que mais gente testemunhasse aquilo.
Desde então tenho dormido mal. Não consigo me alimentar direito. Fico atento nas conversas para ver se um ser humano assume a autoria daquele troço. Alguém quer o meu fim.
Nem uma fala, nem um e-mail, mensagem ou sequer uma pista. Olho nas ruas enquanto estou andando para entrar no carro, estacionar para ver se estou sendo seguido. Nem sombra.
Eu sempre tive muito medo desse tipo de coisa, mas não me lembro de ter comentado com ninguém que tenho superstições. Nem com minha mulher, com quem sou casado há tantos anos.
Depois disso nem no trabalho tenho sido produtivo como antes . Eu não faltava no serviço, sempre fui todo certinho e pontual, mas precisei tirar uns dias de descanso, fui ao médico, sentia febre, calafrios, fiquei em casa, tinha forças apenas para ir do sofá para a cama, sem energia para fazer muita coisa, comendo pouco, tomando um relaxante muscular e sentindo uma sede cortante, eu precisava beber muita água gelada como que para refrescar minhas entranhas.
Melhorei um pouco e voltei ao trabalho, eu precisava entregar relatórios e despachar documentos. Sou há uma década encarregado do setor de contabilidade de uma empresa. Não faço ideia se algum funcionário ou ex-empregado me deseja o pior. Essa dúvida me consome.
Procurei o padre da igreja aqui do bairro. Fui no sábado antes do horário que eu imaginava que teria missa. Ele não me conhecia, Faz tanto tempo que eu não entrava ali que nunca tinha visto o pároco que está há anos na igreja Nossa Senhora dos Aflitos. Até o nome da igreja, aiiii...
Somente para ele em confissão contei o ocorrido.
Padre Atílio, um homem que deve ter menos de cinquenta anos, disse para eu ficar calmo, que Deus é todo poderoso, mandou rezar para os meus anjos da guarda e indicou a leitura de uns salmos da bíblia.
Chegando em casa procurei uma bíblia velha empoeirada no fundo de um guarda-roupa do quarto que deixamos arrumado para quando algum sobrinho ou prima vem nos visitar. Deu trabalho, depois de tossir bastante, e abrir caixas e mais caixas com fotografias antigas achei o livro sagrado com capa de couro e zíper gasto no fundo de uma das gavetas.
Ao acordar e toda noite antes de dormir eu rezo como o padre indicou e peço proteção. A imagem do boneco macabro não saí da minha memória.
Pensar que quem fez isso contra mim pode fazer de novo é o que me angustia.