Elisangela

O olhar outrora sempre atento agora parecia perdido, sem graça e sem vida. Da enorme janela de sua casa ela assistia ao movimento quase que inexistente de sua velha rua. Os vizinhos estavam morrendo, alguns mudaram-se, e tantos outros desapareceram nesses incontáveis anos.

O cheiro da comida vindo da casa ao lado fez ela sorrir. Fazia tanto tempo que ela não cozinhava mais. Os filhos não deixavam, consideravam perigoso para a condição que a mãe tinha. Então Elisangela sentou-se na velha cadeira de vime, passou os dedos ossudos pelos brancos cabelos e percebeu o quanto os anos estavam sendo cruéis com ela.

Os filhos haviam se afastado, os netos também. Sem o marido, vítima de uma terrível queda da escada, a vida parecia um tanto quanto sem sentido. Ela que levantava todos os dias as seis da manhã, que ligava a televisão do quarto para acompanhar as primeiras do notícias do dia.

Então ela saia da cama e caminhava pela casa. Arrastava os chinelos pelo pequeno apartamento de cinquenta metros quadrados. E só parava quando a empregada a chamava para tomar o café da manhã. Então Elisangela sentava-se a mesa e vagarosamente bebia seu café e comia suas torradas com geleia.

Velhas revistas jogadas dentro de uma caixa de papelão quase que inexistentes, devoradas pelas malditas traças. O corpo magro encurvado de hoje nem é sombra do corpo perfeito de curvas sensuais de antes.

Envelhecer é uma droga. Não bastavam as rugas e a saúde minguante, havia também a dificuldade em andar. Sair de casa só se fosse acompanhada por alguém. Sozinha jamais, pois naquela idade era perigoso cair e quebrar uma perna.

Elisangela não tinha mais sonhos. O que ela desejava era apenas uma morte tranquila, diferente da morte do marido.

Um filme passou em sua cabeça. O Marido aos setenta de idade, de saúde razoável, rolou pelas escadas da antiga casa. Foi um tombo feio, fazendo-o bater a cabeça e morrer quase que instantaneamente. Foram dias e meses difíceis após o falecimento do marido. Dias em que Elisangela se viu perdida, sem ninguém para lhe estender a mão justo em um momento tão difícil como aquele.

Mas ela conseguiu superar as dificuldades. Graças a pensão deixada pelo marido e a sua aposentadoria, Elisangela vive um final de vida digno. Com as economias que fazia junto com o marido ela comprou um apartamento, usado, mas bom o suficiente para viver os seus últimos dias na terra.

O telefone toca. Lentamente Elisangela caminha em direção a ele, uma raridade. Aqueles aparelhos antigos, com botões onde não era mais possível ver os números.

- Alô? – Ela diz com voz fininha.

Os olhos ficando arregalados, a respiração quase faltando, parecia um ataque cardíaco se aproximando, mas era apenas o filho, o mais novo, de quarente e seis anos, ligando para ela só para dizer que chegaria por aqueles dias para fazer uma visita.

Então o coração de Elisangela se encheu de alegria. Após dizer um até logo para o filho, ela desligou e ligou para o salão de cabeleireiro, o mesmo de trinta anos.

Três toques na porta, um arrepio na espinha em um já vai com o máximo de potência que os pulmões dela permitiam. O clique da fechadura enquanto o coração de Elisangela se enchia de felicidade.

O filho caçula estava de frente para ela. Os mesmos olhos do pai, a mesma falta de cabelo e aquele sorriso quase que tímido saindo daquele homem de quarenta e seis de idade.

Um abraço apertado, um beijo molhado e lágrimas escorrendo de seus olhos. Um pedido de perdão de ambos os lados e um aceite também. Foram anos de uma distância doída, amarga. Era apenas o mais novo quem tivera coragem de fazer, de perdoar e de ser perdoado.

Sentaram-se na mesa sem toalhas, com um enorme coelho de porcelana posto em cima, com flores caindo na janela, com sorrisos se formando e com mais lágrimas caindo. Elisangela ficou feliz quando falou com a neta pelo telefone. Era uma menina de dezesseis anos, cabelos negros escorrendo pelos ombros, sorriso grande e tímido, parecia que a timidez era algo muito forte dentro daquela família.

E os anos se passaram, e Elisangela com a idade ainda mais avançada e sem conseguir responder por ela mesma, graças ao Alzheimer, foi morar com o filho. Foi na casa de jardim grande e cômodos grandiosos que ele viveu seus últimos dias de sua vida, amando e sendo amada.... FIM...

Fernando F Camargo
Enviado por Fernando F Camargo em 05/11/2024
Código do texto: T8189958
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