O CÍRCULO

— Você é novo por aqui, não?

O homem sentou-se ao lado de Paulo e sorriu. Avaliou aquele sorriso num instante — era seu métier: “típico das pessoas treinadas pela solidariedade de muitos anos ou de charlatões vendendo fórmulas milagrosas para a queda de cabelos. É quase cínico. Mas reconfortante ao mesmo tempo.”

Brecou a própria prepotência. Era apenas “um amistoso sorriso de boas-vindas”.

— Sim, eu... É meu terceiro dia... noite, quero dizer.

— Somos todos amigos por aqui. Fique à vontade para se abrir quando se sentir bem para isso, certo? Posso saber seu nome?

— É... Fernando — mentiu Paulo.

— Ok. Seja bem-vindo — o homem pareceu acreditar de pronto — Sou Douglas, um dos orientadores. Também faço café às vezes e ofereço meus ouvidos a quem precisa. Como disse — deu um leve toque no ombro dele —, fique à vontade.

Olhou para o palco. Clóvis — o outro orientador e seu “mentor” ali — estava atendendo outras pessoas. Pelo visto, sua condição ainda não era do conhecimento de todos os que gerenciavam o lugar.

“Até que demorou para fazerem contato” — pensou. “Agora é tarde! Qualquer alternativa diferente seria perigosa. Poderia colocar tudo a perder.”

Estava na Casa do Caminho, um centro para reabilitação e ressocialização de ex-dependentes químicos. Julgava ser possível passar despercebido com a ajuda de Clóvis. Nunca colocara uma gota de álcool na boca, quanto mais drogas de qualquer espécie. Mas precisava estar ali. Por outra pessoa. Acomodava-se sempre nas cadeiras da última fila.

O local era um galpão. Poderia ter pertencido às antigas serrarias dos primórdios da cidade. Transformaram-no em algo parecido com uma igreja com cadeiras de madeira em dois blocos separados por um corredor central. Como um auditório de cinema, teatro ou algo do tipo. Frases inspiradoras emolduradas em cartazes coloridos se espalhavam pelas paredes. No fundo, de frente para a plateia, um tablado de uns vinte centímetros de altura. Era de onde um dos orientadores fazia uma palestra rápida sobre os lemas comuns dessas instituições. Como “um dia de cada vez” e “devagar também se chega”, por exemplo.

Paulo se voluntariara para essa missão. Por amor. Seu nome foi exposto após confiar nas pessoas erradas. Dois meses em uma clínica e agora as reuniões para ganhar a “medalha de bom moço” se reintegrando à sociedade. Os “canais aceitáveis”. Clóvis estava por dentro desse jogo. E pelo visto era o único a saber disso ali.

Um rapaz se levantou e a contragosto, Paulo o saudou, juntando-se ao coro. Ajeitou as costas no espaldar da cadeira. Uma peça simples de madeira barata. Facilmente encontrada em algum botequim com mesas nas calçadas para a “juventude normal” se divertir. O nome do rapaz era Danilo e fora viciado em anfetaminas. Estava há cinquenta e sete dias sem recorrer às drogas. Dizia-se muito triste com a morte do cachorro do vizinho e sobre como as coisas ao redor dele poderiam acontecer e entristecer as pessoas. Isso não era motivo suficiente para entregar os pontos e reconhecer que nem tudo eram rosas no mundo dos outros também.

— É uma coisa pequena, sabe? A morte do cachorro do vizinho. Bob. O nome do cachorro, não o vizinho. Eles enfrentaram isso numa boa, compreendendo a morte... a chegada da hora dele e tudo o mais. As pequenas tristezas são possíveis. Entender isso, para o meu caso, foi uma vitória.

Paulo abaixou a cabeça e escondeu o rosto entre as mãos. Refutou raciocinar a respeito do discurso do rapaz. Não estava por ali para perder tempo analisando o aprendizado ou a vida de outras pessoas. O caso era suportar tudo em silêncio. E imperceptível, se possível.

Tivera duas opções: ou se declarava um viciado e conseguia a mágica de “apagar certos focos de incêndio” potencialmente devastadores para a pessoa mais importante de sua vida, ou assumia a verdade e com isso assistia a todos os sonhos dele e de seu amor serem varridos para um abismo.

Os aplausos soaram como reconhecimento pelos esforços do tal Danilo e quando ergueu seus olhos para o palco, quem estava lá já era o tal Douglas. Trocaram um olhar, mas ficou apenas nisso. Outra pessoa pediu a palavra e o discurso dos ex-dependentes recomeçou com outras situações e vitórias. Paulo manteve-se calado até o final. Tão logo Douglas convidou todos para o lanche, levantou-se e foi embora.

Enviou uma mensagem a Clóvis tão logo entrou no carro:

“Douglas veio ter comigo. Não gosto de mentir. Não contarei o motivo real. Fale a ele para me deixar em paz.”

O identificador do contato estava congelado. O sinal “entregue” estava ativo, mas “lida” permanecia apagado. Ficariam sem leitura e resposta até a próxima noite, no entender dele.

No correr do dia, tentou contato telefônico. O serviço indicava caixa postal. A necessidade o obrigava a frequentar as reuniões por todo aquele mês, ao menos. Era imperativo. Para todos os efeitos, o Círculo deveria saber que permanecia em um processo de reabilitação das “drogas”.

Sentou-se no mesmo lugar na última fila e sorriu esperançoso ao ver Douglas interagindo com vários frequentadores. Torcia em seu íntimo para permanecer despercebido. Clóvis não estava à vista. A dada altura da noite, após um breve intervalo entre os discursos, os olhos do orientador voltaram a lhe inquirir. Negou com a cabeça e um sorriso e permaneceu calado.

Perguntou a respeito de Clóvis para uma pessoa na fila da frente antes de ir embora no horário do café. Esta não soube dizer nada. As mensagens no celular continuavam sem resposta. Tentou ligar outra vez no dia seguinte. Novamente caixa postal.

A situação o irritou. E para seu desconsolo, não tinha a quem recorrer. Se soubesse disso, deveria ter permanecido na clínica do interior. Deveria ter continuado por lá, incógnito e em paz. Estaria longe, realmente. Ao retornar à cidade e aceitar frequentar as reuniões da Casa do Caminho, confirmava a narrativa fictícia da recaída. De certa maneira, sabia estar vigiado. Só poderia contar com Clóvis. Nem pensar em tentar um contato com alguém do Círculo. As brasas poderiam reavivar e não seria prudente.

Armou-se de muita paciência e de todos os patuás e mandingas conhecidas, torcendo para encontrar Clóvis na reunião seguinte e salvaguardar sua opção pela discrição. Vivia uma situação de extrema pressão — ao menos era assim que entendia. Muitos e perigosos segredos eram seu legado. Necessitava resistir em absoluta solidão — se não conseguisse o apoio de seu “comparsa” na farsa. E vivia assombrado por uma vontade enorme de atirar toda a merda no ventilador.

Ao se sentar na mesma cadeira de sempre, a mente vislumbrava um cozimento em fogo lento, com o assobio da pressão soando de forma esporádica e displicente. Douglas o viu. Fez o convite com os olhos. Refutou outra vez mais. Pouco antes do intervalo, sentiu sede. Levantou-se, indo ao bebedouro. Uma moça ajeitava a mesa, viu-o se aproximar, sorriu e disse:

— Essas coisas são como mergulhar em um lago gelado em um dia de muito sol, sabe? Você fica todo arrepiado e então um segundo depois... está se divertindo.

Ele balançou a cabeça sem entender, enquanto sorvia o último gole d’água do copo.

— Então, Fernando! Sente-se mais seguro de dividir conosco?

Douglas aproximou-se no meio dos outros participantes. Paulo não se lembrava de ter dado outro nome a ele. Sentiu o rosto corar.

— É... O Clóvis não veio hoje outra vez?

Douglas olhou para a moça do café. Ela deu de ombros. Paulo-Fernando não entendeu os dois.

— O Clóvis teve um problema pessoal e ficará afastado da Casa por uns tempos. Um problema com a família dele, entende? O pai dele é um homem muito doente. Espero que isso não seja um problema para você.

Ficou com os olhos pregados no chão por um segundo e então se esforçou para parecer indiferente:

— Poxa! Claro Douglas, problema algum. Sinto por ele apenas.

— Mas você pode ficar à vontade. Faça como preferir. Estarei toda noite por aqui. E aquela ali — apontou a moça do café que sorria para os outros — também é orientadora. É o nosso sucesso mais longo, aliás. Conheci a Regina quando ainda éramos um grupo no Hospital das Clínicas, há doze anos. Aquela medalha no pescoço representa isso: dez anos longe das drogas. Você já deve estar há um bom tempo longe, não? Seu aspecto físico é ótimo.

— Eu não... quer dizer. Eu...

Ele escutou o assovio crescer no cérebro e tentou controlar-se. Mas a solidão dos últimos dias era opressiva demais. Olhou Douglas no fundo dos olhos e soltou o ar em um suspiro. Arrastou-o para as cadeiras o mais longe possível dos demais. Convidou-o a sentar. Então começou a falar.

— Meu nome não é Fernando. É Paulo. E meu problema não é com as drogas. O Círculo que frequento — frisou a palavra “círculo” com uma entonação de voz — não admite pessoas como eu. É uma afronta à moral e aos bons costumes, no mínimo. Uma traição, digamos assim. A posição... meu cargo exige uma opção sexual “normal”. O Círculo não admite bandeiras multicoloridas e diversidade de gênero. Não admite políticas inclusivas. Rejeita modificar o enfoque publicitário, por exemplo, exibindo propagandas com negros, orientais, pessoas com deficiência, etc. O Círculo não admite a possibilidade de alteração no roteiro de um filme ou seriado de TV reprisado, onde um casal normal é transformado em um casal gay. Não permitem que certas pessoas em posição estratégica no comando optem por não seguir mais as regras do mundo fundado e defendido há milênios por eles e sua civilização — ergueu os dedos para indicar aspas.

A panela tinha explodido, enfim. Falava como se fosse necessário entupir os ouvidos do interlocutor com todo o ódio embutido à força em sua mente pelas regras do sistema. Realmente, a tal Regina tinha razão. Era como mergulhar em água gelada e arrepiar-se. Respirou fundo diante do olhar surpreso de Douglas e continuou:

— Uma pessoa extremamente importante para o Círculo, para todas as pessoas que você e eu conhecemos ou não, ficaria em uma situação muito difícil se... Na verdade, todo o seu conhecimento de mundo, sabe? Algo sólido e seguro, de extrema confiança popular poderia ruir se um segredo assim viesse à tona. Então, para preservar esse mundo como está, deixá-lo seguir o rumo e continuar a prover as pessoas dessa segurança e estabilidade, era melhor acontecer assim. Na verdade, era melhor o segredo não existir. Mas para não existir, era preciso alguém... pagar o pato!

Douglas manteve-se quieto. Era nítida sua surpresa. Na verdade, naquela pausa para o orientador engolir a narrativa e tecer algum tipo de comentário, Paulo avaliava se deveria ou não contar quem era seu amante. Como sempre, calculava os prós e contras em compartilhar informações. Sacudiu a cabeça e recostou-se no espaldar da cadeira, cruzando os braços aguardando a manifestação do outro. Acabou falando outra vez:

— Construímos uma narrativa em cima das suspeitas, dando conta de que tive uma recaídas nas drogas e disse coisas indevidas. Por conta disso, internei-me em uma clínica e agora estou nessa jornada de reintegração. Por isso prefiro ficar à parte, sem dividir nada. Clóvis foi contatado e aceitou salvaguardar minha estadia. Infelizmente tive de me abrir contigo e te envolver nisso. E preciso contar com sua discrição.

— O que você fazia no governo?

A pergunta o atingiu como um tiro à queima-roupa. Engoliu em seco. Não adiantaria negar. Douglas parecia ser mais inteligente do que seu sorrisos amistosos faziam supor.

Vladimir Ferrari
Enviado por Vladimir Ferrari em 05/11/2024
Código do texto: T8189914
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