A Benzedeira
Nunca me esqueci de Dona Zetti. Ela era uma senhora quando eu era um menino. Minha mãe me levava na casa dela sempre à tarde para se benzido. Se eu estava ardendo febre, vomitando, tenho pesadelos à noite, ou sem vontade de brincar o que era muito estranho pq eu tinha muita energia e passava os dias na rua minha mãe me pegava pela mão e me arrastava para a casa da vizinha que não morava tão perto, mas também não era longe. Morávamos no mesmo bairro.
Ela usava um facão enorme e falava umas palavras estranhas para me benzer. Aquele ritual me assustava. Eu sentia meu coração bater muito forte. Minha mãe confiava nela mas eu sentia uma coisa estranha. Não sei definir. Eu tinha medo quando ela se aproximava de mim com as mãos bem quentes, segurando uma muda de planta, com olhar sério e ao mesmo tempo sereno. Uma vez fiquei apavorado pq ela avisou minha mãe que precisaria passar as mãos no meu corpo todo, fazendo rezas, para tirar não sei o que de mim. Eu estremeci. Ela de modo respeitoso, rezando baixinho, passou rapidamente as mãos pelo meio corpo todo e eu senti uma mistura de arrepio forte subindo pela coluna, com medo e falta de ar. Na verdade eu acho que minha respiração ficou ofegante pq eu estava adoentado e ao mesmo tempo com receio do que aquela mulher poderia fazer comigo. Minha mãe estava sempre ao meu lado. Pedia para eu ficar calmo e fechar os olhos. Isso me deixava ainda mais alerta. Eu não via nada, apenas sentia o ventinho na minha pele dos gestos que ela estava fazendo.
Eu cresci. Comecei a aprontar na rua, era quase adolescente e minha mãe me levava na Dona Zerti para ver se eu tomava jeito. Minha mãe chegava em casa e além de me dar broncas rezava muito.
Na adolescência comecei a furtar, depois comprei um revólver usado com numeração raspada. Com ele fiz meus primeiros assaltos. Era um 38 velho, mas que funcionava bem.
Depois com grana comprei uma pistola das boas. Quase zerada. Com o $$$ dos assaltos comprei uma moto linda. Foi logo depois disso que fui preso. Ainda não tinha 17 anos. Conheci o que era o inferno e o purgatório na terra. Minha mãe religiosa estava cada mais triste, com aparência adoecida de tanto desgosto e rezando cada vez mais por mim.
Eu sai da Fundação Casa ainda mais violento. Revoltado. Não tinha medo de policial, de facção rival, de assaltar, de dar tiro e nem de levar bala.
Fui preso mais uma vez. Tinha me afastado da casa da minha mãe e do bairro. Nunca mais tinha voltado. Não sabia como estava o comércio, as pessoas e a escola do bairro. Eu tinha saudades. Eu, agora reconhecia, tinha sido feliz. Minha infância foi boa. Minha mãe era carinhosa. Meus amigos legais.
Eu tinha saído da cadeia, estava chegando o dia de Natal eu fui visitar minha mãe que ainda morava no mesmo quintal e circular pelo bairro. A escola estava fechada. Fiquei na calçada observando o prédio que havia sido pintado recentemente.
Estava passando na frente da casa do Jefê, amigo de futebol da infância, quando escuto uma voz me chamar: "Filho!"
Fiquei gelado. Eu que tinha medo de pouca coisa na vida, reconheci a voz da Dona Zitta. Olhei em volta e a vi, mais velha, com cabelos grisalhos, pele preta com aparência macia e bonita, e olhar penetrante me chamando: "Vem me dar um abraço, filho!"
Eu fiquei paralisado por alguns segundos.
Dona Zitta me perguntou se eu havia me esquecido dela.
Respondi que não. Eu apenas estava surpreso.
Ela lembrava meu nome! Leocádio.
Todo mundo me chamava de Léo. Meu pai escolheu esse nome por causa de uma novela. Meses depois que eu nasci ele saiu para comprar cigarro e nunca mais voltou. Na verdade ele não fumava. Minha mãe vive contando essa história.
Eu fui andando meio envergonhado até a Dona Zitta e ganhei um abraço apertado, quentinho, daqueles pra matar a saudade de quem não se via há muito tempo.
Eu nunca havia me esquecido dela. Da voz, o olhar, os gestos, as orações, o cheiro de erva cidreira do jardim, a imagem do facão enorme e afiado usado por ela para tirar o mal olhado. Tudo isso sempre esteve nas minhas memórias.