Cantos e Encantos na Terra do Contrário

O despertador tocou, mas, em vez de acordar de frente, Sofia se levantou de costas, dando passos hesitantes enquanto tentava entender a nova realidade. O espelho refletia seu semblante confuso. “Espera, eu estou de costas ou de frente?” pensou, tentando descobrir qual era a direção certa.

“Bom dia, Sofia!” gritou Felipe, que passava correndo. Ele cantava a frase, como se entoasse uma melodia em vez de apenas cumprimentá-la. “Como você dormiu?”

“Cantei tão bem que não consegui dormir!” Sofia respondeu, também em tom de canção. Ela se virou para ele, que já estava de costas, seguindo em direção à calçada que, na verdade, era a rua. “E você, como ficou na cama?”

“Na cama, eu não fiquei! Eu fui pra cama e não consegui sair dela porque o sol se escondeu de manhã!” respondeu Felipe, gesticulando exageradamente. “Você não percebe que a lua morreu à tarde?”

Sofia olhou para o céu. Em plena manhã, não havia sinal do sol, que só começava a surgir no horizonte por volta das quatro da tarde. “É verdade! Olha, as flores estão subindo!” exclamou, observando as plantas que pareciam crescer ao contrário, enraizando-se no ar e com folhas balançando em direção ao chão. “O que vamos fazer agora?”

“Vamos trabalhar!” gritou Felipe, dando uma pirueta. “Mas quem trabalha durante o dia? A noite é que a gente se movimenta, e de dia descansamos!”

Ambos riram da ideia de iniciar o dia pelo fim. Sofia e Felipe decidiram se encontrar na praça ao entardecer, pois, ali, o campo de futebol se transformava num parque vibrante onde as árvores se tornavam lâmpadas naturais, iluminando o local com um brilho suave que não vinha do sol, mas das próprias folhas fluorescentes.

Na praça, um grupo de crianças gigantes brincava. As cabeças eram tão grandes que Sofia e Felipe se sentiram minúsculos diante delas. Uma menina de longas orelhas semelhantes às de um elefante chamou atenção.

“Ei, cuidado para não desobedecer, senão aparece uma fessora!” ela cantou.

“Uma fessora?” Sofia perguntou, intrigada. “O que acontece se ela aparecer?”

“Ah, isso é fácil! Ela coloca a orelha de castigo!” explicou Felipe, batendo palmas.

As crianças, que já tinham orelhas bem alongadas, começaram a rir e a fazer caretas, tentando ver quem conseguia fazer mais barulho cantando. Felipe sugeriu uma competição para ver quem produzia a nota mais alta, e Sofia logo se juntou ao coro improvisado, cantando uma canção surreal:

“Lá na terra do contrário, o cachorro faz miau, e quem late é o canário, e o gatinho faz au-au...”

A melodia ganhou eco pelo parque, atraindo ainda mais habitantes. Em poucos minutos, formou-se um coro confuso e barulhento, onde cada um cantava uma versão diferente da canção.

“Percebeu que o céu está verde e a grama é azul?” Felipe exclamou, gesticulando com os braços, enquanto tentava manter os passos de uma dança ao contrário.

“E a gente está indo para frente, mas, na verdade, estamos indo para trás!” Sofia respondeu, observando as nuvens que desciam em direção ao chão. Ela viu um morador flutuando pelo ar em um balão, indo cada vez mais para baixo ao invés de subir.

“O que é isso?” perguntou Sofia a um senhor que passava. Ele segurava o que parecia ser um bilhete estranho e um chapéu comprido que tinha asas. “Como faz para subir?”

“Ah, menina, aqui a gente vai para onde precisa ir, mas faz isso parado! Quem viaja é quem fica!” ele respondeu, puxando uma espécie de tapete flutuante que desceu ao toque.

Sofia e Felipe experimentaram o tapete. Assim que se sentaram, ele começou a se mover lentamente, girando em círculos como se o ar estivesse conduzindo o percurso. O destino? Um grande lago no centro da cidade, onde as árvores formavam uma ponte que parecia de vidro. Felipe tocou a água, que tinha textura de algodão, e a sensação era como passar os dedos numa superfície aveludada.

Ao sair do lago, os dois avistaram uma casa curiosa. O teto era cor-de-chocolate, enquanto as portas pareciam feitas de doce. Ao chegarem mais perto, perceberam que as fechaduras eram comestíveis.

“Para entrar, é só comer a fechadura!” Felipe exclamou com um sorriso.

“Isso parece incrível!” Sofia respondeu, dando uma mordida no pedaço da fechadura de chocolate. Assim que o pedaço sumiu, a porta se abriu. Dentro da casa, o piso era feito de sorvete, os móveis de caramelo e as cortinas de algodão doce. Eles exploraram cada canto, rindo das descobertas. Havia prateleiras repletas de frutas, mas todas elas estavam presas no teto, e para pegá-las, bastava pular e tocá-las para elas caírem, como chuva de sabores.

Um senhor idoso, de olhos divertidos, os observava e lhes ofereceu uma tigela de sopa que era fria como gelo. “Aqui, na terra do contrário, no verão é que faz frio, então aproveitem!” disse, rindo com eles.

De Volta ao Mistério da Terra do Contrário

Saindo da casa, Sofia e Felipe perceberam que todos os moradores caminhavam em uma só direção, como se fossem atraídos por uma força invisível.

“Para onde todos estão indo?” Sofia perguntou a uma senhora que flutuava ao lado deles, segurando um guarda-chuva que, em vez de protegê-la da chuva, jogava pequenas gotas coloridas sobre sua cabeça.

“Hoje é a Grande Dança do Tempo!” ela cantou, rodopiando no ar.

Curiosos, Sofia e Felipe seguiram o grupo. Logo, chegaram a uma grande arena circular onde todos os habitantes se reuniam para dançar. A música ecoava de instrumentos que pareciam flutuar sozinhos, tocando melodias estranhas e hipnotizantes. Todos, de costas, giravam, faziam passos curtos para trás e depois davam saltos altos, como se saltassem do chão para o ar.

A certa altura, Felipe e Sofia encontraram um lugar entre os dançarinos e começaram a dançar ao contrário, experimentando movimentos que não faziam sentido algum, mas que, de alguma forma, pareciam certos naquele ambiente.

“Isso é um verdadeiro embasbacante!” Sofia disse, encantada. “Acho que nunca mais vamos esquecer o que vivemos aqui.”

O senhor de antes apareceu perto deles e riu. “Na Terra do Contrário, só se esquece o que está bem guardado. Então, se querem se lembrar, guardem as lembranças em um lugar bem visível!” e piscou o olho, desaparecendo entre os dançarinos.

Ao final do dia, que parecia não ter fim, Sofia e Felipe sentiram que era hora de voltar. Já haviam visto de tudo e estavam prontos para deixar a Terra do Contrário.

“Será que vamos acordar amanhã e tudo estará normal?” Sofia perguntou.

“Talvez, mas eu tenho uma sensação de que sempre que precisarmos ver o mundo de outro jeito, ele vai estar lá, do lado que fica de cá ou do cá que fica de lá…” respondeu Felipe, sorrindo.

Os dois amigos se despediram dos habitantes e caminharam para fora da Terra do Contrário, deixando para trás um mundo onde a ordem não existia e a magia era a única lei. Ao atravessarem a linha invisível, sentiram uma leve tontura, como se a gravidade voltasse ao normal.

Na manhã seguinte, Sofia acordou de frente, mas a lembrança daquele dia maluco ficou tão clara quanto um sonho. Ela olhou pela janela e viu que o sol nascia do lado certo e que a rua continuava sendo rua.

Mas dentro dela e de Felipe, a Terra do Contrário agora era um lugar real, esperando o momento em que eles precisariam de um novo canto e encanto para reencontrar a mágica.

Nêrilda Lourenço
Enviado por Nêrilda Lourenço em 01/11/2024
Reeditado em 01/11/2024
Código do texto: T8187285
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