"O VELÓRIO DE DONA CARMELITA" Conto de: Flávio Cavalcante

O VELÓRIO DE DONA CARMELITA

Conto de:

Flávio Cavalcante

Mendes era um mentiroso conhecido em toda a cidade. Sua fama precedia qualquer um de seus passos, e todos sabiam que, com ele, qualquer conversa podia virar uma história inacreditável. Era mentira pra todo lado. Se dizia que tinha lutado com jacaré, que conhecia o presidente, que tinha uma fortuna guardada – só não mostrava porque era homem discreto. Era de uma criatividade sem fim. Mas as pessoas riam, se entreolhavam e, no fundo, até gostavam de ouvir as histórias inventadas de Mendes, que, de tão absurdas, divertiam as rodas de conversa.

Certo dia, num final de tarde quente, um de seus amigos de bar virou pra ele e falou:

– Mendes, conta aí uma mentira nova pra gente! Você tá mudo hoje, que é que houve?

Mendes suspirou, deixando um ar pesado escapar. Levantou a cabeça, com os olhos marejados, e anunciou, sério:

– Não tenho ânimo pra contar mentira nenhuma hoje, meu amigo. Minha mãe... minha mãe se foi. Dona Carmelita partiu, deixou esse mundo ontem à noite. Estou desolado... E o pior é que não tenho dinheiro pra pagar o velório da coitada.

O bar inteiro caiu num silêncio de pesar. Ninguém esperava aquela situação. Todos conheciam Dona Carmelita, uma velhinha robusta e simpática que era vista sempre na cidade, comprando seus temperos, indo à missa, sorrindo para os vizinhos. A dor de Mendes parecia tão autêntica que até quem o conhecia de longa data, sabendo de sua reputação, sentiu um aperto no peito. Como duvidar de uma dor tão evidente?

Sem pensar duas vezes, os amigos se compadeceram. Uma vaquinha foi organizada, e, de mão em mão, o chapéu passou, enchendo-se de notas e moedas, enquanto Mendes agradecia, fungando, entre uma lágrima e outra.

– Muito obrigado... Vocês são irmãos de verdade, são amigos que não têm preço – dizia ele, com a voz embargada.

Na manhã seguinte, todos se arrumaram para o velório de Dona Carmelita. Vestiram-se de preto, tomaram banhos longos, ajeitaram os cabelos e seguiram para o local combinado por Mendes. Ao chegar lá, depararam-se com uma cena inusitada: em vez de um ambiente de luto, encontraram Dona Carmelita sentada numa cadeira de palha, bem no meio da sala, com uma xícara de café nas mãos e um sorriso de pura satisfação no rosto.

A surpresa foi geral. Um burburinho de espanto tomou conta do lugar, e os olhares se cruzaram sem entender nada. Até que Dona Carmelita, com aquele seu jeito doce e firme, disse:

– Bom dia, gente! Eu não sei que história foi essa que o Mendes inventou, mas acho que ele queria só me fazer companhia. Tão atencioso ele, mas viva estou e, se Deus quiser, vou viver muito mais ainda!

O silêncio deu lugar a uma gargalhada estrondosa. Alguns riram, outros balançaram a cabeça, mas, afinal, todos perceberam que tinham caído na maior mentira que Mendes já contara.

Moral da história? De tanto mentir, Mendes conseguiu, enfim, que ninguém suspeitasse. E, como dizem, até mesmo o mentiroso mais famoso sabe escolher a mentira perfeita quando precisa.

Mendes, ao fundo, se limitou a dar de ombros e a lançar um sorriso sem-vergonha. Afinal, até ele, o maior dos mentirosos, teve seu dia de mestre.

Flávio Cavalcante

Flavio Cavalcante
Enviado por Flavio Cavalcante em 29/10/2024
Código do texto: T8185089
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