Sem Clima
Você vai colaborar com o dinheiro para o jantar de fim de ano? A pergunta era para mim. Eu estava longe, olhar preocupado, desatenta, coração massacrado, garganta arranhando com a fuligem da fumaça que invadiu o céu de São Paulo. Como demorei para responder perguntaram outra vez, sem paciência. Percebendo que a mulher havia feito a questão olhava para mim esperando alguma resposta respondi que talvez, ainda não tinha certeza, confirmaria assim que a data fosse definida.
Meu coração sangra de tristeza com a imagem da mata queimada e dos animais mortos no cerrado. Na Amazônia não é diferente. Sinto desespero.
Escuto como resposta que preciso decidir logo porque o lugar da festa será escolhido de acordo com o número de participantes. Eu penso : Nossa! .Ainda está longe, faltam meses para o fim do ano. O clima é de fim de mundo.
Fico ali ouvindo a conversa, não tenho como escapar, mas visivelmente não estou interessada, minha bateria social é limitada, estou aflita com a destruição do planeta e pensando que eu queria viver até os cem anos, como ainda vou completar quarenta nos próximos anos, mas talvez nem faça sentido meu desejo de ser centenária.
A colega de curso, sentada ao meu lado, responde que ela vai sim e que preferia que fosse marcado para num sábado. Que tal alugar um sítio bem grande?, disse ela.
Eu leio as notícias no celular e meus olhos ficam marejados. Áreas gigantescas devastadas pelo fogo em todo território nacional. Continuo em silêncio. Outra colega opina que deveriam fazer um churrasco.
Eu lembro que não chove há semanas e antes de sair de casa fiz uma nebulização. Tive que comprar o aparelho porque estava com a sensação de que ia sufocar.
A outra entra na sala e diz que bom mesmo seria alugar um espaço com piscina, e que ela levaria a filha, o melhor seria a festa começar cedo. Eu apenas escuto.
Um homem afirma que deveriam mesmo ir para um barzinho, cada um paga a sua conta, comanda individual é a solução e que alugar um lugar sairá mais caro e será mais trabalhoso porque alguém terá que pensar em muitos detalhes.
Penso que vou precisar passar mais tarde na farmácia para comprar uma máscara daquelas que absorvem pequenas partículas do ar porque estou cada dia sentindo mais cansaço, e o médico que consultei remotamente indicou o uso.
A caçula da turma relembra que ela fará aniversário e que gostaria de levar bolo. Quer saber se haverá mais aniversariantes e se eles querem dividir o custo.
Lembro que meu protetor solar está acabando e que eu vou comprar um bloqueador solar com fator mais alto. O sol está cada vez mais ardido e mais agressivo.
O bolo será com massa branca ou de chocolate?, alguém questiona.
Preocupada em reciclar tudo separo embalagens e blister de remédios, bulas para levar até o ponto de coleta, assim como os potes de vidro, e tudo que pode ser reciclado.
Outros aniversariantes se interessaram pelo bolo que será de chocolate, ficou decidido, com cobertura e recheio. Agora falta decidir onde será encomendado. Ninguém tem tempo para fazer um bolo para tantas pessoas em casa. Bolo de pote é mais prático disseram. O valor do bolo será arrecadado, assim todos aniversariantes pagarão pouquinho.
Respondo a mensagem de celular do pedreiro que vai em casa para ajeitar o cano que está com rachadura. Preciso que ele faça o conserto para continuar guardando água da chuva que uso para lavar o quintal , diretamente da calha do telhado, isso quando tiver chuva. Os dias de sol escaldantes matam as minhas plantas nos vasinhos e meus pets ficam agoniados procurando sombra e piso frio.
Agora estão escolhendo as bebidas, quais as marcas de cerveja, se terá alguma batida, se farão caipirinha e ela levará vodka ou cachaça. Alguém diz que vai levSr suco pois não bebe nada alcoólico. Outro dia que prefere refrigerante e que levará Coca-Cola super gelada.
Olho em volta e me sinto deslocada. O céu estava com uma camada marrom, mistura de poluição com fumaça. Em SP poluição do ar não é novidade, mas agora piorou, o céu estava alaranjado, cor de poeira e eu me lembrei da cena do filme Mad Max. Senti um arrepios subir até o pescoço.
Se tivesse brinquedos infláveis no gramado perto da piscina seria ótimo afirmou uma colega com filhos pequenos. Afinal além da piscina quem crianca pode leva Las.
Uma alternativa seria contratar uma empresa de espetinhos que leva tudo pronto, manda funcionários, quem contrata paga o pacote fechado, escolhe as carnes, as saladas, pães , logo, seria pura praticidade.
Fico imaginando as crianças brincando no sol em um dia calcinante de calor, mesmo que o protetor solar seja potente ele pode ser insuficiente no período mais crítico do dia, entre dez e quinze horas, justamente o ponto alto da festa, perto da hora do almoço.
Quando tentei argumentar que poderíamos levar copos e pratos de vidro, alguém resmungou que eu sou ecochata. Eles levarão tudo descartável, sim. Copos, talheres, taças, pratinhos, onde já se viu ficar lavando louça ? É festa, momento de descanso, todos disseram. Terá água, refrigerante, suco, cerveja sem álcool, além da bebida alcóolica, ou seja, um pouco de tudo. Bas-tan-te garrafa pet. Tudo irá para o lixo. Reciclar dá trabalho, ninguém quer guardar todas as garrafas de plástico, levar até um ponto de coleta. Um resmungou : " não adianta nada".
Eu suspiro melancólica pensando que não é possível que ninguém perceba o que está acontecendo. Me lembro do livro pequeno e potente escrito pelo indígena Ailton Krenak afirmando que é possível adiar o fim do mundo. Todos parecem sofrer de uma cegueira branca, como escreveu em um ensaio o genial Saramago.
Essa noite eu não dormi bem, estava quente demais, o tempo seco, tudo muito desconfortável. O ventilador era insuficiente e eu nunca havia pensado em comprar um aparelho de ar condicionado para o meu quarto. Essa manhã acordei cansada, sigo exausta me arrastando pelo dia. Não tem como faltar ao trabalho. Não tenho como fugir e estando lá não escutar as conversas.
Entediada como um extra terrestre que entende a língua humana mas nunca se sente integrada eu me mantenho como um celular no modo avião, a festa vai acontecer seja lá onde lugar for e com direito à panetone e espumante.