NAS PENÚLTIMAS

NAS PENÚLTIMAS

“Nesta farsa de macacas vestidas de seda que é o mundo, a falsidade é a argamassa que mantém unidas todas as peças do presépio”

Carlos Ruiz Zafón,O Labirinto dos Espíritos

O homem entrou pela casa adentro, empunhando uma arma de fogo e encostou-a à testa da mulher idosa:

- O teu ouro e o teu dinheiro ou mato-te aqui já.

“Fiquei em pânico, aterrorizada, e levei-o até ao sítio onde tinha a minhas argolas de ouro e todas as minhas poupanças.Ele roubou tudo”

Numa aldeia, pacata, longíncua, ao abrigo dos crimes e da podridão das grandes cidades.

- Pelo menos, Senhora Júlia, não lhe fez mal - respondeu ele, tentando contemporizar e acalmar a emoção passada da senhora que lhe tratava da casa.

Mas aquilo perturbou-o e ele ligou ao empreiteiro a que costumava recorrer quando precisava de obras e outros serviços na casa da aldeia. O outro comentou desabridamente:

- É por todo o lado. Isto também já está minado.Não é só em Lisboa ou no Porto.

- Neste caso a mais de duzentos e cinquenta kilómetros de Lisboa.

Após o choque já encolhia os ombros .O mundo a desmoronar-se a um ritmo alucinante.Guerras na Europa a leste e no Médio Oriente com tendência a alastrar.E ele próprio também a desmoronar-se.

-Já não me resta muito tempo!Pouco me devo preocupar com tudo isto.

De madrugada, deitado, envolto no silêncio, embrenhado em reflexões e com uns olhos verdes brilhantes a fitarem-no.A gata negra com uma gravata beje no focinho e no peito e que o observava altiva, esperando que o dono se levantasse e o dia tivesse início.

Janelas que se abriam, luz que penetrava tímida e relutante, o que espera aos humanos em mais um dia.

Ele só tinha deveres e recomendações desde que a bomba caíra e assolara a sua vida.

Caminhar à desfilada, beber água que nem um animal desmamado, fazer exercícios absurdos para controlar a região abdominal e ler, ler para não deixar os neurónios entorpecer e males maiores assomarem. Reler grandes obras como que a despedir-se:o romance clássico em francês, o livro de novelas em inglês, a obra de história e o policial.

Para além dessa lista interminável quase todos à sua volta também se debatiam.

O Cônjuge viu-se ao espelho e soltou um gritinho:

- O botox não ficou bem e tenho uma sobrancelha mais repuxada do que a outra.

- Mas isso até pode dar um toque interessante e clownesco – contrapôs ele.

- Não.Pareço um palhaço!-atalhou ela.

E os amigos? Cada um a travar as suas batalhas o melhor que sabiam e podiam.

A Vitória a tentar aparar os golpes constantes das cobrazinhas das colegas no frenesim imparável de se sobreporem umas às outras no complexo psiquiátrico da sua indulgência atascada na teia empresarial. O Mário a tentar aproveitar a aposentação ao máximo com aulas na universidade como aluno e como professor, participação em grupos corais e ginástica sueca na piscina. O Alberto em viagens constantes com o amigo andaluz recrutado numa aplicação de encontros,Todos a contorcerem-se, a armarem-se, a disfarçar as próprias dores ,a tentar apenas sobreviver.

Mas à noite, porém , no sono mal dormido, polvilhado de fantasias e pesadelos ele descompensava a injustiça, a ferocidade e o desengano: a Senhora Júlia arriava com a vassoura nas costas do deliquente que a roubara e deixava-o estendido a sangrar da boca, a Vitória sobrevoava um campo aberto do reduto da corporação onde as colegas se esgrimiam em duelo e se golpeavam sem piedade, acenando-lhes lá do alto com luvas brancas, imaculadas que lhe chegavam aos cotovelos.

Mas a realidade era outra. Ele pontualmente descia a escada e saía para a rua para apanhar o táxi contratualmente conduzido por uma chauffeur crispada.Uma criatura sui generis.Toda nos trinques.Com o cabelo apanhado , braços tatuados, piercings nas orelhas, aneis e pulseiras psicadélicos e um nariz empinado à Bonaparte.

E ele pensava:

- Faz de conta que vou de dragão.

Atravessavam a cidade num rodopio meio marado com acelerações e marchas cautelosas por causa dos múltiplos radares alerta.

Pouco depois ele entrava, descia a rampa como se fosse um vale,dirigia-se ao lugar próprio, preparava-se, chamavam-no, despia-se, envergava a bata, subia para a marquesa, posicionava-se e deixava que lhe corrigissem a postura.

-Assim! Até já! – gritava um dos assistentes, antes de o deixarem só.

“Senão estou nas últimas , estou nas penúltimas!”

E de mãos cruzadas no peito, descomposto, ele mordia os lábios, engolia o desespero e o medo que o tolhia e esperava placidamente pelo zumbido que anunciava o início das radiações.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 28/10/2024
Código do texto: T8184043
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