A Casa Ferida
Não sei ao certo em que momento damos conta da nossa própria existência, provavelmente cada coisa que existe tem seu próprio processo e modo de se entender no mundo. A névoa dos quase 90 anos que carrego tornam minha memória um pouco turva, mas a sensação de existir é inevitável, pode esmaecer ou embaçar com o passar do tempo, mas está sempre ali, impregnada e latente para nos lembrar do que somos. O porquê do que somos, já são outros quinhentos. É mais complexo e misterioso do que sou capaz de formular. Se me sinto meio confusa com esses poucos anos de existência que tenho, se comparada ao mundo, e levando em conta meu estado fixo de observação, imagino a sensação daquele rio que corre logo ali desde que mundo é mundo. Coitado, a cada trecho que ele percorre já não é mais o mesmo, carrega um pouco de tudo por onde passa e segue um fluxo ininterrupto para um lugar que sei lá onde fica e no final se torna outra coisa, ouvi dizer que ele vira um tal de mar. Deve sofrer de transtorno de personalidade o pobre. O fato é que quando Guilherme abriu minha porta pela primeira vez naquele dia de festa, puxei forte o ar para dentro de mim e ele nunca mais foi embora. Nem Guilherme, nem o ar. Tem dias que esse último se torna mais denso, difícil de respirar, outros dias eu queria que ele nem entrasse, mas esse elemento é um tanto impertinente, indomável, entra onde as vezes nem é chamado. Voltando às festas, foi para isso que nasci, para abrigar alegria, música, dança, risada, flerte, namoro, ciúme, até uma briguinha vez ou outra para apimentar as coisas, sabe? E foram inúmeras as festas, dias e noites de muito movimento e vida aqui dentro, mas quando Guilherme morreu, Chico e Joaquina, filhos que não herdaram em nada as qualidades do pai, não pensaram duas vezes em se livrar de tudo que o pai havia aqui construído. Dali para frente, dias tenebrosos vieram. Observei ameaçadores arranha-céus sendo construídos ao meu redor, um revestimento pegajoso e preto cobrindo meus arredores. Concreto e ruído invadiram meus dias, comprimindo meu espaço e aquele ar que entrara pela porta foi ficando rarefeito, raro e sem efeito. Queria sair correndo dali, mas estava encravada àquele chão, fixa, presa, profundamente aterrada. Assim seguiram meus dias, um tipo de torpor tomou conta de mim. Infiltrações abriram feridas em minhas paredes, buracos no teto deixavam passar a luz do sol que queimava minhas entranhas naqueles dias em que o verão se torna impiedoso com aqueles que dão sombra. As raízes das árvores rasgavam minha carne e a acidez da merda dos pombos corroía meu piso que era tão lindo, de um vermelho encarnado e brilhante que não se vê mais por aí. Apesar de eu ter virado latrina deles, nem vou maldizer tanto os pombos, por muito tempo eles foram a única presença a me habitar. Descobri que eles são mais inteligentes do que eu supunha, aprendem a identificar de cara os que lhes alimentam e os tratam bem, majoritariamente velhos solitários, daqueles que os perseguem e tentam agarrá-los a todo custo, as crianças peraltas ou as maldosas mesmo. De certa forma a presença dos pombos me trazia acalanto pelas relações que mantinham com os humanos. Apesar de ressentidos por terem sido substituídos ao longo da história por cartas, telégrafos, fax, emails, eles sublimam esse sentimento comendo de forma fácil nas praças ou lixeiras e devolvem tudo em forma de misseis de cocô. Pena nunca ter entrado aqui uma pomba branca, portadora da paz que eu tanto precisava. Quisera eu ser capaz de romper uma viga de sustentação e simplesmente desmoronar, desabar, tombar, ruir, cair sobre mim mesma, deixando assim de existir. Talvez com isso a morte viesse para mim também, assim eu poderia reencontrar Guilherme. Eu só não sabia se a morte leva tudo e todos para o mesmo lugar. Eu quis ser borboleta, ser leve, capaz de voar, me deslocar, me mover. Passei a sentir uma inveja terrível do rio. Assim seguiram dias, meses, anos...
Eu estava resignada, esperando o dia em que chegasse um trator derrubando a mim e ao meu jardim de tipuanas, paineiras e jatobás, até que Maria chegou e abriu novamente minha porta. Ao entrar, seus olhos brilhavam com admiração e comoção. Ela tocou minhas paredes e pisou cuidadosamente no meu chão vermelho que não brilhava mais, não por cuidado com o próprio sapato, mas por respeito, apreço. Maria me observava atentamente por dentro e por fora. Cada canto, quina, ângulo, cômodo e telha tinham um propósito em sua mente. Eu sentia em sua presença, uma chama de esperança e regeneração, não era como a faísca criadora que eu via nos olhos de Guilherme, mas um lume renovador, de reabilitação. Maria conduziu o projeto do meu tombamento com mão firme e cuidadosa. Nos meus piores dias em que eu só queria tombar, não concebia que para uma casa, há uma a diferença brutal entre tombar e ser tombada. À medida que os dias passavam, minha transformação era notável. Cores novas nas paredes, o vermelho do chão voltou a brilhar e o som da vida ressoando por todos os lados começou a substituir a aura sombria. A música e a dança retornaram ao meu interior, foram como um bálsamo. Meu jardim voltou a desabrochar e as árvores próximas pareciam mais saudáveis. A casa ferida que um dia me tornei estava lentamente se curando, de dentro para fora. Agora penso que não existe apenas um momento exato em que damos conta de nossa existência. É um processo constante que vai ocorrendo no convívio com a existência de tudo e todos a nossa volta. É incessante, até que um dia a gente já não exista mais. Um dia Maria se foi. Chegou José. Nadir toca piano às quintas e Cândida ensina bordado. Quirino veio assuntar, não gostou de nada e nunca mais voltou, mas pelo jeito João não vai embora tão cedo, ele criou abrigo em um ninho bem escondido no canto esquerdo do meu telhado.