Vida com sabor de morte - BVIW

Os estilhaços daquele acerto de contas atingiu toda a comunidade. Esta vendinha no pé do morro era uma bandeira de paz. Mãe e filho eram os primeiros moradores daqui. O cheiro amadeirado do ambiente, misturando canela, cravo e quitanda recém saída do forno foi consumido pela bala perdida que passou perto e deixou comigo a vida com sabor de morte - uma questão de fogo queimando a consciência.

Era rotina: Dona Júlia trazia o bolo partido em fatias e entregava ao filho. Ele, com suas mãos trêmulas e cuidadosas, colocava-o na vitrine, junto aos docinhos de leite com raspinhas de limão. Com seus óculos na ponta do nariz Alcides percebia que eu não tinha dinheiro pra comprar nada. Com dificuldade de locomoção, ele saía de trás do balcão e vinha até a porta da venda: É pra você.

Hoje sou eu aqui atrás deste balcão. Procuro o cheiro bom de amendoim torrado envolto em papelotes, que ele guardava pra mim. Mas só encontro pacotes de lanches com aromas artificiais. Enquanto Dona Júlia viver, tomarei conta do pequeno comércio dela, com o mesmo carinho que aqui recebi quando criança. É ela a mãe que não tive, que reza para afastar de minha mente a imagem d'ela tentando arrastar o filho em busca de socorro. É ela quem não se cansa de repetir: não foi culpa sua.

Tema: Questão de fogo

Maria do Carmo Fraga (Mariana Mendes)
Enviado por Maria do Carmo Fraga (Mariana Mendes) em 23/10/2024
Reeditado em 23/10/2024
Código do texto: T8180274
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