A CANÇÃO DE LAURA- Conto LGBT

A CANÇÃO DE LAURA

Este conto foi inspirado em Safo de Lesbos, poetisa grega do século VII a.c.

Rio de Janeiro e São Paulo, 1885.

Segurando a mão de Ismênia, Laura a levou pela trilha ascendente.

─ Aonde me levas?

─ O dia está magnífico, minha querida Ismênia! Vamos desfrutar a brisa do mar e os aromas dos lírios no campo.

Laura parou sobre o topo da elevação e abriu os braços, rodopiando.

─ Vamos aproveitar esse último dia! - depois deitou-se na grama, fazendo um gesto para que a amiga fizesse o mesmo.

─ Por que último dia? - indagou Ismênia, confusa.

─ Para estarmos juntas.

Laura inclinando-se sobre ela e beijando-a na boca. Era a primeira vez que fazia tal coisa com uma menina. Por sua vez, Ismênia ficou surpresa com a atitude impetuosa da amiga. Sempre pensou que seu primeiro beijo seria com um rapaz, imaginava o que sentiria. O beijo de Laura lhe despertava novas sensações a tal ponto que ela não conseguiu rejeitar suas carícias.

─ Como sabes, meu pai é comerciante e decidiu mudar-se para São Paulo. Não posso ir sem confessar meu amor por você. – ela inclinou-se e sussurrou em seu ouvido ─ Quero matar o desejo que corrói minha alma, quero explorar teu corpo, escalar estes montes, sonhar nestes vales, beber nestas fontes...

***

Cleis, a mãe, vomitou a tarde toda, depois, melhorando um pouco, meteu-se na cabine do navio e não saiu mais. Fernando, o pai, passou o dia conversando com os passageiros. Alheia a tudo, Laura mantinha-se na amurada, observando Copacabana desaparecer aos poucos no horizonte. Havia se despedido da Ismênia às pressas, não dando tempo para choros. Prometeu escrever cartas para ela e disse que um dia voltaria ao Rio.

***

Na nova casa em São Bernardo, São Paulo, preocupada com o futuro de Laura, Cleis a matriculou no colégio de boas maneiras de madame Leopoldina Duarte. Queria que ela fosse uma pessoa fina, requintada. Que se casasse com um homem rico e fosse uma dama da alta sociedade. Coisa que Laura achava ridículo, porém, não falava nada, não queria conflitos com a mãe. O que desejava mesmo era arranjar um emprego, ganhar um salário, ser independente. Nas horas vagas escrevia suas poesias e cartas para Ismênia.

“ Aqui em São Bernardo, há prados onde cavalos pastam a relva coberta de flores. A brisa sopra um gosto de mel doce e suave. Diante da imagem de Nossa Senhora, junto a esse gracioso bosque de macieiras e altares de incenso fumegante, mirra e cássia, peço bênçãos sobre nós. A água da fonte é límpida e fria e o som cálido me deixa sonolenta. Me deito sobre essas folhas macias e penso em ti, minha querida Ismênia. Espero sonhar contigo“.

***

O pátio da casa do coronel Lourenço Cícero, produtor de café, estava enfeitado com flores, cortinas coloridas, tapetes do Oriente e estatuetas. Guirlandas púrpuras pendiam das colunas da varanda, tapetes de pele de onça enfeitavam as paredes. Junto a fonte, uma mesa comprida estava coberta de pratos com comidas diversas, ânforas com vinho, pratos com carnes, frutas e doces. Num tablado de madeira, uma bandinha entretinha os convidados com suas músicas.

No colégio, Laura havia conhecido Aimée, filha do anfitrião, que a convidou para a festa. Elas se reuniram com outros jovens, Pedro, Adriana e Adélio, irmão de Aimée. Pedro ficou encantado com a beleza de Laura e tentou de todas as maneiras conquistá-la, fazendo pose de aristocrata, tecendo elogios elaborados. Laura se divertia com as atitudes dele. Enquanto o rapaz não ultrapassasse os limites da educação, tudo bem, podia aguentar a exibição de sua oratória insípida.

─ Laura escreve poesias – disse Aimée.

─ Verdade? –perguntou Pedro, apoiando-se no ombro de Adélio.

─ Gosto de escrever- respondeu a jovem. Ela mantinha uma atitude reservada e tímida porque não gostava de se exibir.

Adélio aproveitou para dizer;

─ Nós temos um grupo que promove concursos de canto e poesias no ginásio. O evento chama-se Entre Cantos. Se você quiser participar, falarei com os organizadores para incluir você no grupo.

─ Claro. Quero, sim.

Adriana tocou no braço dela, dizendo; ─ Amanhã nós vamos fazer um piquenique. Você não quer participar?

─ Gostaríamos de sua companhia – disse Adélio.

─ Adoro piqueniques.

A voz do dono da festa elevou-se, pedindo silêncio.

─ Amigos! Por gentileza, façam silêncio e ouçam o que tenho a dizer. Em primeiro lugar, quero agradecer a todos pela presença. Não vou falar de política, embora minha língua esteja coçando para dizer certas verdades sobre esse regime ditatorial do governo Vargas.

Lourenço fez uma pausa para que os murmúrios cessassem e continuou;

─ Fiquei sabendo que entre nós se encontra alguém que escreve poesias e canta. Alguém que acabou de chegar a nossa comuna. Estou falando de Laura Coutinho de Menezes. Dito isso, convido a poeta a subir ao palco para nos proporcionar uma amostra de sua arte.

Surpresa, Laura olhou para Aimée e a garota abriu as mãos e ergueu os ombros como quem diz, não tenho nada com isso.

Sem opção para negar, Laura subiu ao palco.

─ Vou recitar o poema intitulado, Amanhecer.

“ O sol nasce, brilha, resplandece.

Na beira das fontes, na copa das árvores

Soam cantos, estridentes sibilos

Melodiosos gorjeios

Zumbidos, murmúrios

Sons graves, vagos

Das flores fluem fluidos

Odores suaves...

(...)”

***

Os rapazes limparam o chão tirando pedras e galhos para as garotas estenderam a toalha e depositarem a cesta com doces e salgadinhos. Todos se sentaram na borda da toalha. Laura sentou-se ao lado de Aimée, com os pés para o lado, puxando o vestido e deixando as pernas à mostra para o deleite de Pedro. Ele era o mais velho do grupo, devia ter uns 20 anos. Laura gostava de provocar o rapaz, mas o que a atraia era o pescoço e parte do busto que as roupas de Aimée revelavam.

─ Eu costumava fazer piqueniques com meus pais. – comentou à guisa de assunto.

Adriana tirou o chapéu capeline e colocou ao lado.

- Você já beijou alguém? Ou alguém já te beijou? ─ perguntou, esboçando um sorriso desafiador.

Aimée a repreendeu. ─ Adriana! Isso é pergunta que se faça?

- Ué! Não é nada demais!

─ Claro que já fui beijada – respondeu Laura com desenvoltura. – Deixei um amor no Rio.

Adriana ficou interessada. ─ Como ele é? Baixo, alto, gordo, magro, é bonito ou feio como o Pedro?

─ Feia és tu! − retrucou o rapaz, fingindo zangado.

─ Não sejas indiscreta – aconselhou Aimée. ─ Deixe Laura nos encantar com um de seus poemas.

─ Isso! Um poema erótico. − pediu Pedro, excitado.

Laura assentiu e recitou;

─ Esse sentimento implacável, desejo que queima como brasa.

Afoga a razão nos confusos meandros das incertezas.

Agita a alma.

Esquecer, fugir, é impossível.

A ânsia do querer. No enlevo das carícias, nas curvas, cantos e recantos

e o coração pulsa, a paixão aflora pelos poros. O desejo por ti me alucina...

Aimée olhava nos olhos de Laura. A mão dela na sua, podia sentir na pele a energia, uma chama furtiva percorrendo seu braço até as profundezas de seu ser. Ela ergueu-se rápido.

─ Já volto − disse, e saiu correndo, entrando na mata.

Pedro exclamou: ─ O que deu nela? Dor de barriga? Nem comemos ainda!

Laura também se ergueu e a seguiu. ─ Vou ver como ela está.

Entrou na mata, caminhou alguns metros e encontrou Aimée encostada a uma árvore, de olhos fechados. Ao ouvir ruído de passos, abriu os olhos. Ficou aliviada ao ver que era Laura.

─ Ouvindo a tua canção, bebi a poção do amor.

Laura aproximou-se, a beijou e com mãos hábeis, começou a abrir os botões da blusa dela. Logo as duas estavam nuas. Dois corpos alvos no meio do verde. A folhagem sussurrava, cantando com suas línguas verdes. Uma voz destruiu o encanto.

─ O que é isso? Não posso acreditar! − era Adélio, chocado com a cena. ─ Minha própria irmã! Isso é pecado mortal.

Envergonhadas, as duas garotas se vestiram rapidamente.

─ Meu irmão, ela me forçou. Laura é uma feiticeira.

Aimée se afastou correndo, passando por Pedro e Adriana que chegavam naquele instante.

─ O que aconteceu?

─ Elas estavam nuas, se beijando e se esfregando uma na outra. A culpa é dela – disse Adélio, referindo-se a Laura e saiu atrás da irmã. Laura começou a ir embora, mas Pedro segurou-a por um braço. O rapaz sentia-se decepcionado e de certa forma, traído.

─ Vagabunda! – disse, cerrando os dentes.

Adriana pegou uma pedra e com uma expressão de raiva e nojo, desferiu uma pancada na cabeça de Laura.

***

Escurecia. Cleis estava preocupada com a demora da filha. Ela tinha saído com os amigos e não voltou. Falou com Fernando e ele decidiu ir à casa de Aimée. A jovem disse que, depois do piquenique no Morro do Sabiá, tinha se separado de Laura no caminho de volta para casa.

***

Depois que deixou o piquenique com Adélio a agredindo com palavras insultuosas, Aimée decidiu desafiá-lo. Acusou o irmão de ter queda por rapazes, de ser afeminado e ameaçou contar aos pais caso ele falasse sobre o que viu na mata. Adélio percebeu que era melhor ficar calado. Assim, os irmãos selaram um acordo, guardando segredo.

***

Iluminando o caminho com lampiões, Fernando e Cleis foram à procura da filha. Primeiro indagaram nas casas vizinhas se alguém a tinha visto, depois subiram a trilha que levava ao morro. Em todo o trajeto a chamavam pelo nome.

Andaram pela clareira, chamando, até que ouviram uma voz angustiada, pedindo socorro. Ultrapassando a barreira de arbustos, Fernando foi o primeiro a se espantar com aquela visão. Cleis se desesperou ao ver a filha naquele estado. Laura estava deitada num buraco, sem roupas, o corpo lambuzado de mel, coberto de formigas vorazes. Os insetos, além de comer o mel, arrancavam pedaços da pele. Ela não tinha forças para se levantar, estava gelada. Uma mancha de sangue coagulado marcava a têmpora esquerda. Com um lenço, Fernando limpou como pode o corpo da filha, depois despiu o jaquetão, a enrolou nele e a carregou para o hospital. Desidratada e com uma crise de hipotermia, Laura ficou internada.

Cinco dias depois, ela já estava em casa. Um tratamento com pomadas cicatrizantes e antibióticos, amenizaram a dor e secaram feridas. Com a cabeça enfaixada, permaneceu alguns dias na cama, se recuperando. Fernando queria saber quem eram os culpados para denunciá-los à polícia. Ela disse que voltava para casa quando dois homens a atacaram e a levaram para a mata para que as formigas a comessem. A acusaram de ser pecadora e feiticeira.

Laura achou que era hora de revelar.

─ Me acusaram de ser lésbica. Só por isso...

─ Lésbica? O que significa isso? –perguntou a mãe, ignorando o significado do termo.

Fernando pensou alguns instantes, procurando a melhor maneira para explicar a uma pessoa tão apegada à moral e os bons costumes como Cleis.

─ Existem algumas mulheres que sofrem de uma forte febre nos lábios, e para aliviar o calor elas esfregam na…− fez uma pausa e tentou de novo ─ Existem algumas mulheres que gostam de dormir com mulheres.

─ E o que tem isso? Por falta de cama, uma vez dormi com minha tia...

─ Vem comigo.

Ele pegou delicadamente a esposa pelo braço e a conduziu para o corredor. Alguns minutos depois, Laura ouviu o choro dela. Era natural a decepção de Cleis. Os planos e sonhos que a mãe tinha por ela, caiam por terra.

O pai voltou e parou ao lado da cama. Laura temia que ele ficasse furioso, porém, Fernando limitou-se a mirá-la por alguns instantes e depois sentenciou:

─ Acho melhor você ir morar com sua tia no Rio de Janeiro. Por algum tempo. Para evitar falatórios. Um escândalo agora pode prejudicar meus negócios.

Laura não disse nada. Era o que ela desejava. Não queria acusar aqueles que se diziam seus amigos, se bem que os conhecia há pouco tempo, nem poderiam ser chamados de amigos. Para evitar problemas maiores, decidiu esquecer o ocorrido e ir embora da cidade. Era hora de deixar o ninho, ser independente. Tinha planos para o futuro no Rio, abrir uma escola de etiqueta social para moças, trabalhar como colunista em algum jornal.

Enquanto se recuperava para a viagem, escreveu uma carta para a Ismênia. Pagou a um menino da rua para que a levasse ao posto dos correios. Uma simples linha.

"Querida Ismênia. Estou voltando. Espere-me naquele mesmo lugar".

Antônio Stegues
Enviado por Antônio Stegues em 17/10/2024
Código do texto: T8175472
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