Miriam

Estava certo que a mulher o traia, observava um comportamento estranho quando o amigo os visitava - as mãos inquietas, os dedos tocando os lábios quando o olhava, o tom da voz era diferente quando lhe dirigia a fala, o olhar rabiscava no ar que algo estava acontecendo, e Joaquim já não podia negar. No último verão, no sítio em Serra Negra, a mulher e o amigo desapareceram na festa. Todos os procuraram para as fotos; apareceram com alguns minutos de diferença, mas os comportamentos eram igualmente artificiais. A mulher disse que estava no carro retocando a maquiagem; o amigo, que havia ido até a cidade comprar cigarros. Poderia ser apenas um delírio, pensava Joaquim, mas ao mesmo tempo um instinto quase ancestral o corroía.

O amigo era mais jovem que Joaquim, uns 10 anos pelo menos; solteirão, mulherengo, o captar de certos olhos diria que era bonito, não pelos traços, mas pela forma de ser; chamava sempre a atenção pra si, aparentemente de forma natural; não só das mulheres. Tinha uma dessas personalidades magnéticas, que não sabemos ao certo se é fingimento ou autenticidade, que incomoda e ao mesmo tempo atrai; músico, artista de rua, uma cara de palhaço sombrio, pálido, olheiras, fala rebuscada, gostava de dissertar suas teorias e pensamentos superficiais como se fosse a filosofia mais profunda. Joaquim, no fundo, nutria inveja, mais do que propriamente amizade; gostava de ter o amigo por perto por puro status, vaidade. Passavam horas discutindo literatura, música; falavam como especialistas de coisas que não entendiam absolutamente. Um completava o sentimento de grandeza do outro. O amigo contava sobre as aventuras sexuais, a vida noturna nos prostíbulos da cidade, exibia fotos das mulheres que conhecia através da internet... Joaquim sempre se inferiorizava, pois não teve coragem, como o amigo, de exercer a arte - na sua juventude, por pressão da família, largou a música pra ter um emprego formal e a vida de casado o impossibilitava de qualquer coisa além da monotonia. Tinha uma vida confortável, enquanto seu amigo vivia de forma incerta, sendo - segundo a propaganda feita de si mesmo - irregular e descompassada.

A mulher quando conheceu o amigo dizia não ter ido com a cara, reclamava dos dois saírem, se isolava no quarto em suas visitas. Joaquim, pensando sobre isso, viu mais um motivo pra se ter certeza dessa traição, pois, em geral, uma mulher, quando está atraída por um homem, tende a dizer que odeia, que não vai com a cara, que é chato, insuportável... Atuava como professora em um centro psicoterapêutico, onde um dos métodos utilizados era a dança. No último ano passou a dar aulas particulares, a domicílio. Joaquim concluiu que esse era o pretexto que a mulher encontrou pra encontra-lo. Pensou em fingir ir trabalhar por alguns dias e segui-la, mas, no final, preferiu contratar um detetive - no fundo por medo da verdade e, mentindo pra si mesmo, que era melhor um profissional.

No dia da visita ao detetive, seguiu todos seus rituais matinais: passou a camisa, engraxou os sapatos, tomou seu café com dois ovos fritos, polvilhados com 10g de uma proteína extraída de ossos bovinos e uma torrada na manteiga; comeu calmante. Ao sair, a beijou de forma demorada, pedinte; espalmou as mãos sobre sua face, encostou a testa sobre a dela, em um movimento circular percorreu levemente seu rosto. Ela friamente olhou nos seus olhos; não disse nada diferente do que sempre dizia nas despedidas, mas de forma longínqua, decorada. Nunca foi uma mulher de emoções expansivas, mas esse comportamento, que agora era a regra, fez Joaquim mergulhar em confabulações e amontoados internos; teve medo.

No centro da cidade, no Largo do Paissandú, encontrou o endereço do anúncio: um edifício da década de 50, amarelo, esmaecido; na entrada o porteiro cochilava, as mãos entrelaçadas entre as pernas, a barriga enorme do homem ganhava ares que iria explodir com peso do corpo envergado pra frente. Joaquim se aproximou e notou que haviam resquícios de algo em seu bigode, de alguma coisa bebida recentemente, na melhor das hipóteses. O homem respirava de maneira chiada e descompassada, como se fosse morrer a qualquer momento. Joaquim o tocou com a ponta do dedo como quem toca um cadáver pra conferir se realmente está morto, dizendo:

- Senhor... Senhor?

O homem apenas grunhiu um som profundo e respirou longamente. Joaquim pousou a mão sobre seu ombro, mas nada. Deu um pequeno puxão no braço do homem, segurando a dobra da camisa, e, como se acabasse de levar uma descarga de energia, o velho abriu os olhos buscando o que o acordava, correu os olhas embebidos de uma lágrima espessa nos cantos, amarelados, com vasos sanguíneos dilatados em alto relevo; a pele sofrida de quem envelheceu antes da hora; arregalou os olhos ao ver Joaquim:

- Opa, bom dia S'or.

Joaquim sentiu o calor do hálito do homem, uma mistura de putrefação e álcool.

- Estou aqui pra visitar o Moacir, o Detetive.

- Ah... o Pedreira... No 9° andar, só subir.

O prédio não possuia elevador e Joaquim - olhando a paredes descascadas, o piso da escadaria desbotado e rachado, os corrimãos soltos - concluiu que aquele lugar aparentava estar como foi construído; pensou em desistir. De uma das portas, rente a escada do andar pelo qual passava, saiu uma mulher: seios expostos, já sem vida, debruçados sobre o tronco; a barriga - apesar de sua magreza esquálida - pendia por cima da lingerie vermelha translúcida, de onde se via o sexo escurecido, de lábios amarrotados; tatuagens esverdeadas cobriam seus braços e seios e não era possível identificar os desenhos. A mulher olhou pra um lado, para o outro, vendo Joaquim, disse:

- Oi, anjo! Uau... é você?

Joaquim não respondeu, continuou subindo ofegante - estava fora de forma, não fazia nada além de trabalhar em uma repartição do Tribunal de Justiça de São Paulo, onde ocupava um cargo insignificante na chefia do setor de T.I.. Apenas consertava os computadores do prédio, mas sempre engordava as palavras ao falar para as pessoas onde trabalhava, suprimindo sua função. Chegando no andar, bateu a porta. De dentro:

- Um momento!

Joaquim escutou barulhos: gavetas abrindo e fechando, papéis, moedas... Depois silêncio, surgiu um homem na porta, acompanhado por uma nuvem de fumaça de cigarros:

- Pois não...

- Estou procurando o detetive pra um trabalho. O senhor é o Moacir?

- Sim, mas não me chama de Moacir, me chama de Pedreira. Afastou a porta, convidando Joaquim a entrar; conituou:

- Pedreira é por causa do meu sobrenome, Pedroso, como você já deve ter se ligado.

Joaquim deu uma olhada no lugar: sobre a mesa um cinzeiro com guimbas de cigarros e cinzas caindo nas beiradas, um push dagger com o cabo em madrepérola, na parede alguns certificados, poeira por toda parte, pairando em contraste com a fumaça e uma lâmina de luz que entrava pela fresta da janela; uma medalha condecorativa da polícia, fotos em clubes de tiro segurando metralhadoras, escopetas, revólveres de todos os calibres, até mesmo um lança míssil, em todas com o mesmo orgulho nos olhos e um charuto pela metade entre os dentes; como se tivesse acabado de realizar uma operação de guerra, acompanhado sempre dos mesmos homens - todos de meia idade, ostentando masculinidade, tatuagens e armas. Acendeu um cigarro e o trago inicial consumiu quase a primeira metade do cigarro; despencou na cadeira, liberando um odor que Joaquim mal pôde suportar; disse, inclinando o corpo sobre a mesa e entrelaçando os dedos:

- Em que posso ser útil, mestre?

- Difícil falar, mas vou ser objetivo: acho que minha mulher está me traindo. Sabe o que é pior? Da forma mais clássica e babaca: com meu melhor amigo.

- Entendo, entendo. Fica tranquilo, a maioria dos casos em que trabalho é de traição, já estou acostumado, portanto, pode falar abertamente, não haverá julgamento. Aliás, uns 95% dos homens que me procuram suspeitam de suas mulheres.

- Tanto assim?

- Tanto assim

- E desses 95%, quantos realmente estão sendo traídos?

- Ah... eu diria que uns 90%. Essas coisas a gente sente, e quando a gente sente... pode esperar, vem chumbo... ou vai chumbo, que é o que alguns desses homens dão quando eu entrego o trabalho feito. Amigo, analisa bem se é isso que você quer. Não me responsabilizo por nenhuma desgraceira. Já ví muitos homens, alinhadinhos como você, virarem o cão.

- Sei... mas quero apenas saber, tirar essa dúvida de uma vez por todas e, se for caso, eu apenas sumo no mundo.

- Se é assim...

Acertados os detalhes, Joaquim, descendo as escadas, escutou três estampidos ecoarem dos andares abaixo: o primeiro e, alguns segundos depois, seguidamente, mais dois, acompanhados por gritos. Parou por um momento, hesitou em continuar a descer, mas resolveu continuar - a curiosidade acabou fazendo mais efeito que o medo. Ao dobrar o lance de escada, que dava acesso ao andar de onde vinham os sons, um homem saiu em disparada escadaria abaixo. Joaquim colocou metade da cara pra ver o que acontecia. A mulher que gritava era a mesma que havia visto horas antes; ao vê-lo, correu em sua direção com os braços extendidos, gritava com um vibrato na voz que cortava os corredores:

- Ajuda, moço? Ajuda, moço! Mataro a Fabiana! Mataro a Fabiana!

Apontava para um dos apartamentos. Joaquim andou até a porta; dentro uma mulher sobre a cama, vestia apenas a parte de baixo da lingerie; suas pernas estavam sobre o colchão e seu tronco pendia pra fora; entre seus cabelos vertia sangue, formando um círculo, que aumentava de tamanho rapidamente; o corpo escorregava lentamente, até que caiu, produzindo um som cadente dos membros batendo ao chão. Joaquim havia visto algo do tipo apenas nos filmes, e sempre que via ficava aflito, mas, estranhamente, não sentiu nada. Olhou detalhadamente a cena: os cabelos loiros do que agora percebeu ser uma peruca, a lingerie cor de pérola rendada, a cinta liga arrebentada, os scarpins aveludados cor de violeta, uma tatuagem de um tubo de ensaio borbulhando corações em um de seus seios, os incensos espalhados pelo quarto, a fragrância de lavanda misturava-se com o metálico do sangue.

A mulher explicou que a moça havia recebido uma mensagem de um perfil anônimo em uma rede social, dizendo que sabia tudo sobre sua vida de puta, que contaria ao noivo.

"Eu avisei pra ela mudar de local" - Disse esfregando o braço no nariz que pingava.

Pedreira chegou em seguida; falava ao telefone, acalmou, pois a polícia estaria a caminho. Joaquim não queria permanecer naquela cena - o desconforto que isso geraria, prestar depoimento... Pedreira o tranquilizou afirmando não haver câmeras e prometeu que não o citaria.

Saindo do prédio, pensando na natureza do ocorrido, na coincidência e na ironia... soou como um mau presságio. Ia rumo a estação do metrô em passos cada vez mais rápidos. No meio da multidão, sua calma deu lugar a uma falta ar imobilizadora - sua visão se tornou espectral; se iniciou uma chuva fina e volumosa, todos olhavam a estranheza da forma como andava: olhando para todos os lados, duro e reto, os braços cruzados e enterrados contra corpo com evidente força. Chagando a República, onde pretendia pegar o metrô, rumo já não sabia pra onde, um choro quicou descompassado por suas narinas; as pernas enfraqueceram, perdeu o senso de direção e profundidade, a audição sensível, como se pudesse captar frequências que apenas certas criaturas são capazes; perdido envolta de si, despencou ao chão. Todos o olhavam, apenas olhavam.

Miriam... mulher inteligentíssima, nervosa, irônica, atenta a tudo. Talvez esse fosse seu problema - ver demais as coisas, perceber demais as coisas. Uma mistura de Ana C. com Mia Farrow, como se auto imaginava. Pintava quadros, fazia esculturas em argila e gesso, pinturas em porcelana, crochê... sempre envolvida em atividades artísticas; linda, elegante, e sabia disso; despertava desejo nos homens, tanto quanto inveja nas mulheres. Mesmo tendo um círculo social amplo e constante, Miriam passou a sentir nos últimos anos um vazio existêncial, já não sabia mais a direção de sua vida, não via mais sentido em fazer planos e na dança - coisa que amava e estava intrínsecamente ligada a sua personalidade. Estava deixando de gostar de si, e o convívio com o marido se tornou silencioso, de palavras repetidas, gestos vazios, cordialidades textuais... já não se sentia desejada e também não o desejava.

No metrô, nas ruas, sentia os olhares dos homens a cobiçando. Miriam passou a ter necessidade de provocar os homens, uma forma torta e carente de autoafirmação. Onde quer que estivesse, fossem homens que julgasse atraentes ou o contrário; os provocava com seus gestos mínimos, premeditados, lentos, numa dança quase subliminar. Tinha um olhar orgulhoso, altivo, os movimentos de suas pálpebras eram lentos ao piscar e seus olhos grandes, verdes, se movimentavam como uma onda lenta vista do alto. Passou a ter um desejo compulsivo de ser notada, desejada, odiada, que fosse, gostava deixar dúvidas nos homens, gostava de vê-los com medo e incrédulos quando ela os seduzia. Haviam os que a fitavam corajosamente e lascivos. Quando Miriam notava seus destemores, logo passava a ignorá-los - na sua auto explicação, dizia que gostava da fragilidade, dos homens que se mostravam submissos, covardes, sem habilidade com as mulheres, como se tivesse promovendo caridade a um moribundo. Inconscientemente, não passava do medo de ser abordada e que os resultados fugissem do seu controle.

*Inacabado

Vinícius de Andrade
Enviado por Vinícius de Andrade em 15/10/2024
Código do texto: T8174316
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