O CONTÍNUO
Até algum tempo passado, a profissão de contínuo era muito conhecida, pois era exercida por uma pessoa de qualquer idade desde que empregada em um escritório, mais comumente em repartições públicas e que prestava os serviços bancários, de entregas, correios, e outros mais, atividade essa a que denominamos hoje de Office boy.
Valdemar, um tipo simpático, franzino, fino nos gestos e muito educado no falar, um verdadeiro bom-de-papo, era um profissional dessa área. Profissional mesmo, pois nunca se atrasava no horário de chegada ao serviço, jamais faltara um dia sequer, extremamente cumpridor de seus deveres no trabalho. Casado há muitos anos, vinte e cinco mais ou menos, com Divina, esposa dedicada, meiga, poucas palavras e muita afável, com quem tinha três filhos, um deles homem. Nada deixava faltar para a família desde que adaptado ao salário de funcionário público. Até seguro de vida ele tinha e como beneficiária a esposa, como gostava de falar.
Motivo de uma crise conjugal ocorrida após dez anos de casados, iniciou-se minha amizade com o casal, quando Divina, em prantos veio ao meu escritório e queria a separação do Valdemar, alegando motivos para ela trágicos, porém, após breve conversa se pode observar que não eram de nenhuma gravidade, apenas desentendimentos de marido e mulher. Reunido com os dois, não foi difícil para mim apaziguar os ânimos e conciliar o entendimento entre ambos, em vez de promover a procurada separação.
Por isso e por passar o casal a viver em paz formou-se entre nós uma amizade duradoura e sincera que se estendeu além do profissionalismo, passando a nos tornar amigos particulares, incluindo a companhia dos nossos familiares e com mútuas visitas as residências. Amizade sincera gera confidências e Divina não se cansava de confessar que fora uma boba naquela ocasião do desentendimento, que não tivera razão e muito menos motivo para desacreditar de seu querido Valdemar, mostrando a quem quisesse ver e ouvir o seu amor pelo marido. Anos seguidos fui testemunha daquele verdadeiro idílio existente entre ambos, daquela paz duradoura entre Divina, Valdemar e seus filhos. Ele permanecia fiel ao seu trabalho na repartição, pontual, cumpridor de seus deveres, todos os dias úteis da semana, dedicando o domingo a companhia da família e os sábados ao seu divertimento preferido, ao seu hobby único, jogar tênis no Clube Inglês.
Algumas pessoas estranhavam o gosto de Valdemar, o seu passatempo preferido não coerente com um contínuo de repartição pública, portanto incompatível com seu salário, com seu modo de vida e com a condição social dos freqüentadores daquele clube e aquele esporte. Porém, Valdemar respondia a quem o questionava dizendo que o que o fascinava era o comportamento, a finesse e o trajar empregado na atividade esportiva dos companheiros daqueles encontros dos sábados. Por isso, Valdemar saia todas as semanas muito bem arrumado, com sua melhor camisa, calças vincadas, sapatos polidos, barba raspada, cabelos sempre bem cortados e sobre a cabeça um boné tipo italiano, levando sua maleta de mão e sua raquete. Anos seguidos a rotina seguia com Valdemar saindo para seu trabalho ou seu lazer e se despedindo carinhosamente da querida Divina todas as manhãs e voltando ao anoitecer, menos aos domingos.
Naquele fatídico dia o telefone de meu escritório tocou e a notícia veio violenta, atordoando meus pensamentos, já que Divina, aos prantos, com a voz embargada dizia que o Valdemar havia sido internado, às pressas, socorrido diretamente da repartição, em estado grave. Corri imediatamente para o hospital, porém, ao chegar Valdemar já estava a caminho do necrotério, corpo coberto dos pés a cabeça, atingido por um fulminante colapso do miocárdio.
No funeral muito simples, caixão barato, apenas familiares e amigos mais chegados consolavam a viúva em seu imenso sofrimento, que desesperada bradava ao mundo seu amor pelo defunto, as qualidades daquele que por vinte e cinco anos tivera por companheiro fiel e dedicado e chegando a desmaiar por duas vezes durante o velório. Do Clube Inglês não se viu ninguém, nem um representante, nem um companheiro de esporte, nem uma coroa de flores, nenhuma mensagem de condolências, nem mesmo uma simples rosa.
Até a missa de sétimo dia a viúva continuava depressiva, chorando muito e copiosamente, apesar da tentativa de todos em consolá-la, porem com pouco êxito, pois Divina só enaltecia as qualidades do falecido.
O tempo, porém, é o remédio de tudo e para tudo e alguns dias mais, parcialmente aliviada de seu sofrimento, encarando a realidade, corajosamente Divina juntou os pertences e as roupas de seu querido marido para doar a algum necessitado. Camisas, calças, meias, sapatos, tudo separado e embalado carinhosamente, na esperança que alguém, com as mesmas virtudes de seu Valdemar, fizesse proveito daquelas vestimentas. Um a um dos vestuários foram passados e dobrados, até aquela calça de gabardina que ele já não usava há muito tempo, quando de suas idas ao clube nos sábados. Revisava toda a peça, verificando cuidadosamente, quando notou um papel colocado bem no fundo do bolso traseiro. Era um envelope todo dobradinho, amassadinho, trazendo no seu interior uma carta! Curiosa antes, trêmula depois, Divina abriu e começou a ler o conteúdo, notando antes uma forma de boca aplicada no papel branco como se fosse uma marca d’água, colorida em vermelho. Mais atentamente percebeu que era a marca de um beijo no baton, firmado no fundo do papel da missiva. Em linhas muito bem escritas, delicada caligrafia feminina, continha declarações de amor eterno endereçadas ao Valdemar. A data era recente, mas as juras prometiam continuar a viver intensamente na forma como todos os sábados que já passaram juntos por mais tantos anos que já se foram, uma vida! Carinhos e declarações afetivas transbordavam do papel, escorriam com a tinta rubra do beijo de baton e atingiam Divina como as lavas derramadas de um vulcão. O leve perfume do papel tão bem guardado entupiam suas narinas, sufocando-a. As letras manuscritas com tanto carinho enchiam seus olhos de lágrimas, inundando-os como a invasão das águas de um navio naufragando. A sua corada pele agora refletia um branco mais intenso do que o do papel que tinha em mãos. Seu coração disparado palpitava descontroladamente a cada palavra que lia e sua razão não aceitava a existência daquele momento, como atingida por um soco no peito. Chegou as portas do desfalecimento quando deparou com o nome assinado ao final, abreviado: LÚ.
Sentou na cama daquele quarto que venerava, que tinha em suas paredes o testemunho das tantas e quantas vezes se entregara de todas as formas ao seu querido marido, por tantos anos, sem jamais cogitar por tal situação. Vagarosamente, corajosamente procurou ordenar seus pensamentos e voltar a seu discernimento. Lentamente a tontura foi passando e dando lugar a um sentimento de rancor que cada vez mais se avolumava como a querer sair por todos os poros. Uma raiva incontrolável passou a exteriorizar por todas as formas e através de todos os seus nervos. Uma tremedeira, agora de furor, esbugalhou seus olhos, suas narinas não mais entupidas agora soltavam fogo e de sua boca saiu um grito alto, forte, violento, nunca dito antes:
- Filho da puta!
E caiu desmaiada, deixando a singela missiva escorrer por seus dedos, furada e cortada por suas unhas cravadas, molhada pelo suor de suas mãos.
Socorrida, Divina ficou em observação médica por um dia, no pronto socorro mais próximo. Alta obtida, cabeça no lugar a base de calmantes, passou a analisar o passado com lembranças de um nome que lhe ferira mortalmente, gravado com ferro quente no seu cérebro: LÚ. Então era ela! Lucimeire, a copeira da repartição! Valdemar, algumas vezes, em conversa familiar enaltecera a qualidade daquela biscate, elogiando o sabor do café que ela servia, chegando a mudar de marca do pó de café comprado por várias vezes, com a intenção de igualar o sabor daquele feito na Repartição Pública com o de sua casa! Ah! O que ele queria mesmo, concluiu, era sentir o aroma da piranha, mesmo de longe, durante os dias da semana. E a panqueca? Jamais comera outra panqueca igual a da Lucimeire, dizia de quando em vez. Aos poucos e devagar o raciocínio funcionava trazendo esclarecimentos: e os amigos do Clube Inglês, que não vieram ao velório? Não poderiam vir mesmo, pois não existiam!. E a raquete de tênis, sempre polida, impecável, cordoalhas sempre rígidas, não se conservava por ser importada e sim por não serem nunca usadas! Boné italiano no clube inglês, por que não pensei nisso? Mas é lógico que na repartição não se faz panquecas!.
Passados alguns dias, Divina resolveu ir ao cemitério cuidar do túmulo, lavar e desfazer das flores e coroas enviadas pelos amigos no funeral, pois já deviam estar podres e mal cheirosas. Não era o que viu, pois encontrou a laje limpíssima, pedras lavadas e polidas e dois vasos com flores, um de cada lado, rosas vermelhas e cravos brancos adornando a cama final do descarado sem-vergonha. Sobre a lápide julgou ver escrito um nome, quase apagado, como querendo esconder por mais tempo a verdade, uma sombra, quase um pó: LÚ.
Irada, raivosa, puta da vida, num acesso de fúria atirou longe os vasos, as rosas, os cravos e pisoteou por mil vezes o tampo em granito que selava a cova, gritando mil palavrões, xingando cada um dos pombinhos com todos os mil nomes feios que passou a conhecer, fazendo o palco para uma cena que se não fosse trágica, seria hilária.
Mais calma, arrependida de sua fúria anterior, voltou ao cemitério dias depois e encontrou a laje limpíssima, pedras lavadas e polidas e dois vasos com flores, um de cada lado, rosas vermelhas e cravos brancos adornando a cama final do cachorrão. Sobre a lápide julgou ver escrito um nome, quase apagado, como querendo esconder por mais tempo a verdade, um pó, quase uma sombra: LÚ.
Simplesmente abaixou a cabeça, volteou em direção à saída e ao transpor o portão teve a perfeita sensação de pisar sobre a sombra de uma frondosa árvore que entre alguns de seus ramos projetavam no solo os raios do sol e formavam o nome LÚ.
Nunca mais retornou àquele supulcrário.
Ligou-me outro dia a Divina, querendo saber se poderia anular o casamento feito há mais de vinte e cinco anos com o contínuo, forma com que se referia ao falecido, desde que se recusava a pronunciar novamente o nome daquele maldito, conforme suas próprias palavras. Respondi que não, mesmo porque ela não era mais casada, pois passou a condição de viúva, seu estado civil atual. Do outro lado da linha ouvi sua risada, entre as palavras “é mesmo...é mesmo...” Perguntei-lhe se estava bem e como resposta ouvi que nunca estivera melhor, era livre, recebia pensão do Estado e até uma boa casa havia comprado com o dinheiro do seguro de vida, deixando de pagar aluguel como sempre fez o contínuo. E ouvi mais risos, tantos que foram gradativamente aumentando, aumentando até se transformarem em gargalhadas e cada vez mais fortes, mais ruidosas e mais duradouras, que me obrigaram a desligar o telefone após algum tempo, sem poder concluir se foram gargalhadas de ciúme, de vingança ou de satisfação.
Hoje ainda penso que era o gargalhar de uma louca.
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