"O VELÓRIO DA CACHORRA" Conto de: Flávio Cavalcante
O VELÓRIO DA CACHORRA
Conto de:
Flávio Cavalcante
No interior de uma pequena cidade, o velório da cachorra "Princesa" estava lotado. Sim, você leu certo: o velório da cachorra. O falecido Seu Raimundo, um solteirão excêntrico, deixou todas as suas posses — uma casa com quintal, um fusca 1974, um terreno com um pé de manga carregado e uma pequena fortuna guardada — para a amada Princesa. Quando o homem morreu, a cidade toda ficou abismada com a notícia da herança, e para a surpresa geral, Princesa passou a viver como uma verdadeira madame dentro de casa. Mas a vida dela acabou antes do esperado.
No velório, a confusão estava armada. Ao lado do caixão, Dona Gertrudes, a irmã do falecido, enxugava uma lágrima imaginária enquanto encarava o advogado da família, o pomposo Dr. Arnaldo. Ela, claro, não estava nem um pouco preocupada com o destino da cachorra. Seu único pensamento era: "Essa herança TEM que voltar pra mim!"
— É uma cachorra, pelo amor de Deus! — exclamou ela, fazendo a rodinha de curiosos ao redor murmurar.
Enquanto isso, os vizinhos cochichavam. Seu Joaquim, encostado na parede, comentou com a Dona Marta:
— Você acredita que o Raimundo deixou aquele Fusca velho pra cachorra? Agora que ela morreu, o que será que vai acontecer com ele?
Dona Marta, com um olhar de sabedoria, respondeu:
— O Fusca pode até ser vendido, mas aquela casa... ah, Gertrudes tá de olho nela!
Do lado do caixão, Zé Pequeno, o pedreiro que sempre fazia pequenos serviços na casa de Raimundo, tentava disfarçar o riso. Ele tinha sido uma das testemunhas do testamento e sabia do fuzuê que vinha pela frente. A confusão maior começou quando Dona Gertrudes pediu a palavra:
— Amigos, estamos aqui para prestar nosso respeito à Princesa... Mas eu acho que chegou a hora de resolvermos o que vai acontecer com a herança do meu querido irmão, já que a... Pobrezinha — ela limpou os olhos mesmo sem ter lágrimas nenhuma— ... beneficiária não está mais entre nós.
Foi aí que Dona Cida, vizinha de porta, e apaixonada pelos bichos, entrou no meio da conversa.
— Um momento! Seu Raimundo fez um testamento claríssimo! Ele deixou a casa e o dinheiro para quem cuidasse de Princesa. E, por coincidência, eu fui a cuidadora oficial até os últimos dias dessa doce alma! Portanto, tecnicamente, tudo é meu!
Os parentes do falecido se entreolharam, surpresos com a ousadia. Aí foi que começou a gritaria.
— Como assim é teu? Só porque tu dava ração? — gritou Gertrudes, já pronta para avançar.
— Eu dei mais que ração! Eu dei AMOR! — retrucou Dona Cida.
Nesse instante, o advogado Arnaldo, sempre muito sério, levantou-se e bateu a bengala no chão.
— Silêncio, por favor! De acordo com a lei, como Princesa não tinha herdeiros diretos... — ele olhou para o teto, tentando formular a frase com cuidado — o patrimônio vai para o parente mais próximo do falecido
— AHÁ! — gritou Gertrudes, já se achando dona de tudo.
— ...Que seria, tecnicamente, o último a ter cuidado da Princesa — completou o advogado.
Dona Cida deu um sorrisinho vitorioso, mas antes que ela pudesse comemorar, o caixão da cachorra começou a balançar. A sala inteira ficou em silêncio, olhando incrédula para o caixão de Princesa.
— O que é isso?! — gritou alguém do fundo.
De repente, o caixão caiu no chão, revelando que o defunto... não estava mais lá! Princesa não estava no caixão! O padre, sem saber o que fazer, abençoou o vazio, enquanto Gertrudes gritava "É o fantasma da cachorra!". Foi então que o filho do jardineiro entrou correndo na sala:
— Gente, a cachorra Princesa tá viva! Ela só tinha desmaiado com o calor!
O velório virou uma confusão total. Princesa voltou para casa como a verdadeira dona da fortuna, e a cidade inteira nunca mais esqueceu do dia em que uma cachorra "voltou dos mortos" para continuar sendo a herdeira mais rica da região.
E, claro, Dona Gertrudes nunca se recuperou da derrota.
Flávio Cavalcante