Apagão

- Alô, Ildo, estou tão preocupada. Uma senhora que mora perto do meu trabalho sumiu ontem e a família desesperada, procurando por ela em todo canto. Saíram distribuindo cartazes pela cidade e divulgando nas redes sociais a foto da mãe. Fiquei apavorada quando soube.

- Mas...Ela tinha cuidadora, família por perto? Como uma pessoa sai e ninguém vê?

- Sim, Dona Any mora com uma neta e tem uma cuidadora, os filhos moram na casa ao lado. Em um segundo de distração ela parece que pegou a chave e foi para a rua. Ela está com problemas de memória. Uma tristeza. Na hora que eu soube fiquei gelada, lembrei do nosso pai. Ele está cada dia mais estranho. Do nada fica enfurecido. Tem dia que ele passa horas sentado no sofá olhando para o nada, com o olhar triste, paralisado como se tivesse em transe. Esses dias ele chorou de soluçar dizendo que sente saudade dos filhos! A memória dele está muito ruim. Vou marcar retorno com o médico. Tenho medo que ele tenha um apagão e não se lembre mais da gente, da mamãe, de tudo o que eles viveram.

- Quem diria que aquele homem que trabalhou a vida toda, foi operário, criou quatro filhos, adorava passear com a mamãe iria passar por isso. Não sei como vou reagir se uma hora ele não reconhecer mais a gente e os amigos deles.

- Esses dias me peguei lembrando o que ele aprontou no cemitério no dia do enterro da mamãe . Quando me dei conta ele tinha saido de perto da gente fui procura lo na cafeteria, no banheiro, fui até o estacionamento. Estava ficando preocupada . Depois de um tempão uma amiga viu o papai numa sala no fim do corredor e me avisou, ele estava no velório de uma senhora. Você se lembra ? Ele simplesmente entrou lá, sem conhecer ninguém, e estava ao lado do caixão, emocionado, alisando com carinho as mãos da falecida e beijando o rosto dela, e os familiares dela ali sentados olhando pasmos, sem entender nada. Eu tirar ele dali. Fiquei constrangido, pedi desculpa para os parentes que foram compreensivos, chegando em casa eu chorava pela morte da mamãe e gargalhava lembrando da cena.

- Depois que passa a gente acha graça. Na hora eu fiquei sem reação. O papai não estava medicado, não bebe, eu nunca imaginei que ele fosse sumir durante o velório da mamãe e chorar para uma estranha!

- Seu Dinho era tão forte, lembrava a data de aniversário de todos os parentes, dirigia pela cidade com facilidade, sabia endereços, nomes de ruas, os caminhos de cor. Eu ficava impressionada. Na época não existia Waze. O cérebro dele era como um computador. Eu ficava espantada como ele conhecia bem cada região da cidade. E olha que São Paulo é enorme.

- Acho que vamos precisar contratar uma cuidadora para ele. Ou seria melhor um homem? Tenho achado o papai agressivo em alguns momentos. Talvez um homem paciente e forte seja melhor. Vou tirar da cozinha todas as facas, qualquer coisa cortante. Colocar num armário na copa. Um deles inclusive tem chave.

- Precisamos contratar uma pessoa para revezar com a gente . Assim a gente consegue descansar um pouco. Eu não tenho dormido nada bem. No fim do dia estou esgotado.

- Vou pedir indicação para uma amiga. Não faço ideia quanto custa e como funciona esse serviço. Ela precisou de uma cuidadora por um tempão. Alugou até cama hospitalar na época.

- Eu achava que a mamãe iria viver muito, ter uma velhice calma, talvez ficar viúva. Nunca imaginei o que estamos vivendo. Ela era forte e adoeceu, definhou tão rápido. Ela era cheia de energia, festeira, falante, cheia de amigos. Penso nela todo dia.

- Não sabemos nada da vida. A família do papai tinha vários problemas de saúde. Os tios morreram cedo. E quem ficou muito doente é o partiu foi a mamãe.

- Certo. Vou mandar mensagem para a mimha amiga e depois escrevo no grupo da família. Estou aproveitando meu intervalo no trabalho para te ligar. Em casa seria difícil conversar e também não queria que ele nos escutasse.

- Você fez bem. A gente precisa mesmo da ajuda. Cuidar dele junto com o Norberto está muito difícil. A Dilcinha vem todo dia ver o papai. Mesmo assim tem dia que não damos conta. Parece que cada dia ele está pior, mais esquecido. Ainda bem que nós quatro podemos contar um com o outro. Inclusive dividir o pagamento do salário de quem for cuidar dele.

- Verdade. Sem vocês eu nao sei o que faria.

- Tá bom. Vou voltar ao trabalho. Acabou meu intervalo. À noite vou passar aí. Beijo.

- Tchau. Fi

Manuh Danorte
Enviado por Manuh Danorte em 07/10/2024
Código do texto: T8168171
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