RAPADURA (ATUALIZADO)

A poluição que corta a cidade, entre butiques e prédios bonitos. Urubus fazem a festa no esgoto a céu aberto. Prato do dia no restaurante do esgoto: cachorro morto há três dias.

O bendito do cachorro era de Dona Maria, que o procurava há dias, pobre infeliz. Dona Maria, vendo seu fiel cachorro morto com as patas para o alto e os urubus fazendo a festa, se planta e chora.

As pessoas que passam perguntam:

— Por que a senhora está chorando? Aconteceu algo?

— Sim, estou chorando porque meu Rapadura morreu. Coitado do Rapadura!

As pessoas saem sem entender nada, pensando como alguém pode chorar por causa de uma rapadura, enquanto um cachorro morto está ali perto. Uma garota que passava escutou a conversa, ficou curiosa e perguntou:

— Por que a senhora chora por causa de uma rapadura?

— Filha, qual é seu nome?

— Fernanda. E o da senhora?

— Maria.

— Fernanda, vou lhe contar por que chorava e como trouxemos o Rapadura lá do norte. Nós fomos criados comendo rapadura com farinha na fazendinha dos meus pais. Minha velha mãe, que Deus a tenha, tinha uma cachorra que deu cria de um monte de cachorrinhos.

— Então, Dona Maria, Rapadura é um cachorro?

— Sim, Fernanda.

— Nossa, Dona Maria, foi por isso que o cachorro tem esse apelido?

— Não, Fernanda. Colocamos esse apelido em homenagem à minha mãe falecida, uma mulher guerreira, ganhadora de vários campeonatos lá no norte. O campeonato consistia em quem comia mais rapadura com farinha, e ninguém era melhor do que mamãe nessa arte.

— Fernanda, até hoje ninguém conseguiu quebrar o recorde dela: oito rapaduras com três litros de farinha, e sem beber um gole d'água.

— Nossa, Dona Maria, sua mãe era boa mesmo. Eu não consigo comer nem um punhado de farinha, quanto mais três litros, e junto com oito rapaduras!

— Dona Maria, sem querer ser intrometida... Como sua mãe faleceu?

— Minha mãe faleceu depois de sabotarem uma de suas rapaduras. Ela se engasgou com um fiapo de cana que estava dentro. Queria quebrar seu próprio recorde, mas não conseguiu. O prefeito até fez uma homenagem: uma estátua de mamãe com um prato de rapadura. Mas nunca encontraram o culpado da sabotagem.

— Depois da morte dela, eu e meus irmãos viemos para São Paulo com o cachorro pequeno. Chegando aqui, demos o apelido de Rapadura. As crianças gostavam de brincar com ele: jogavam pau, e ele corria e pegava. O Rapadura só vivia com um pau na boca, pra cima e pra baixo, brincando com as crianças.

— Fernanda, que fim trágico... Primeiro minha mãe, agora o Rapadura.

— Dona Maria, a senhora gostaria que eu chamasse alguém para ajudar a carregar o pobre do Rapadura para ser enterrado?

— Não, minha filha. Moro longe, então vamos deixar aqui no esgoto mesmo. Ninguém vai perceber que tem um cachorro morto aqui, com todo esse fedor. Quem vai gostar são os urubus, que já estão rodeando de novo o pobre Rapadura. O banquete vai ser dos bons!

— Dona Maria, é melhor que a gente saia daqui logo. É perigoso. Os urubus já estão esfregando a língua no bico e uma asa na outra.

Depois de jogar o Rapadura no esgoto, Dona Maria olha para o alto e vê aquela escuridão. Eram os urubus descendo para o almoço. Dona Maria e Fernanda saem correndo. Um dos urubus dá uma bicada nas nádegas de Dona Maria, pensando que ela estava morta. De tão velha, parecia uma múmia, com um remendo no joelho, uma faixa no pé esquerdo e uma tipoia no braço direito.

— Está vendo, minha filha? Tomei uma bicada nas nádegas, por pouco não morria.

— Dona Maria, machucou muito?

— Não, Fernanda. Só abriu um buraco perto do que já tinha. Isso é pergunta que se faça?

— Desculpe, Dona Maria. Quer que eu leve a senhora ao hospital?

— Não, minha filha, muito obrigada. Quando chegar em casa, faço um curativo. Já estou toda remendada.

Fernanda olha no relógio.

— Já é tarde! Tenho que ir, Dona Maria. Minha mãe deve estar preocupada. Não chore, o Rapadura deve estar bem agora.

— Fernanda, como ele está bem? Morto por algum carro, agora vai virar refeição para os urubus. Olha bem: ele está sendo enterrado no esgoto, coberto com as asas dos urubus e seus bicos. Como ele está bem, Fernanda? Acabamos de jogá-lo no esgoto, e nem saímos daqui, e o pobre do Rapadura já está só a caveira! E você me diz que ele está bem? Está bem uma pinoia!

— Desculpe, Dona Maria. Tchau, até outro dia.

Dona Maria fica resmungando e não dá atenção a Fernanda. Fernanda sai de cabeça baixa. Horas mais tarde, chega em casa. Sua mãe já esperava no portão, preocupada.

— Onde você estava, minha filha? Você saiu ontem e está chegando agora!

— Mãe, é uma longa história. Eu estava passando no centro da cidade e vi uma senhora chorando. Fui ajudar e descobri que o cachorro dela tinha sido atropelado. O pior, mãe, é que o nome do cachorro era Rapadura.

— Nossa, minha filha, como alguém coloca um nome desses num cachorro?

— Ela colocou em homenagem à mãe dela.

— Agora vai dizer que a mãe dela se chamava Rapadura!

— Claro que não, mãe. Ela só deu esse apelido ao cachorro porque a mãe era campeã de comer rapadura com farinha lá no interior. Morreu engasgada com um fiapo que estava dentro. Ela disse que foi sabotagem. O prefeito da cidade mandou fazer até uma estátua em sua homenagem.

— Nossa, filha, que história louca!

— Pois é, mãe. Ela era muito querida na cidade. E tem mais: enquanto eu conversava com ela, o céu escureceu. Era um bando de urubus que começou a voar em volta de nós. Um até bicou a Dona Maria!

— Mãe, ela era uma senhora de idade, toda machucada, cheia de faixas pelo corpo. Acho que os urubus acharam que ela estava morta.

— Fernanda, não fale assim dessa senhora, minha filha.

— Agora, mãe, vou tomar meu banho. Estou cansada. Depois conversamos mais, tudo bem?

— Fernanda, não adianta tentar me enrolar contando essa história, achando que vou esquecer que você dormiu fora de casa. A senhorita passou a noite na gandaia! Seu pai e eu mal dormimos, preocupados. A senhorita dormiu aonde, que veio chegar a essa hora?

— Mas, mãe, é verdade! Aconteceu mesmo! Eu ajudei aquela pobre velhinha.

— Não tem mais nem menos, Dona Fernanda! Eu não estou falando do que aconteceu com a velhinha. Estou tentando botar na sua cabeça: aonde você estava até essa hora? Você vai ver quando seu pai chegar do trabalho. Ele está muito bravo com a senhorita. Aí, Fernanda, você conta essa história... Quem sabe ele cai. E tem mais: antes que você conte outra mentira, urubu não come cachorro.

PAULO PEREIRA
Enviado por PAULO PEREIRA em 28/09/2024
Reeditado em 28/09/2024
Código do texto: T8161885
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