Quem cuida?
Não acredito que já são seis da manhã. Meu corpo dói como se eu tivesse deitado trinta minutos atrás. Acordar com o alarme do celular apitando é horrível, mas não tem outro jeito, quando são nove da noite quero ir para a cama, sinto meu corpo pesado e implorando descanso.
Com olheiras escuras enormes, parece que levei um soco em cada olho, acordo para mais um dia igual aos outros deste ano, do ano passado, do ano retrasado. Mescla de resignação com cansaço e desgosto, vontade de sumir e a necessidade de ficar, todos sentimentos se misturam dentro do meu peito.
Com dor nas costas eu me deito e com ela me levanto. Deve ser por conta do esforço que faço e também porque não praticar exercícios, sinto saudade da época que ia para a academia pelo menos três vezes na semana. Aquele tempo está tão distante que parece que vivi uma outra vida.
Várias vezes me pego olhando para minha mãe enquanto ela dorme tranquila depois do almoço eu me questiono como será minha velhice. Tenho medo da falta de dinheiro, dos preços dos remédio, e pavor da ideia ficar debilitada física e, pior, mentalmente. Visualizo meu futuro como sendo um nevoeiro, onde vou pisando, passo ante passo, com cuidado, sem avistar nada, mas sabendo que a estrada está ali e que preciso continuar a caminhada.
Sigo pagando o INSS e sei que minha aposentadoria não será nenhuma maravilha. Há anos não trabalho fora. Sei bem que custa caro ser velho, são muitos remédios e vitaminas, é preciso se alimentar bem, pagar uma academia, muito bom seria ter um plano de saúde e manter as contas de consumo em dia. Tenho uma pequena reserva de dinheiro que fiz enquanto trabalhava e aos poucos vejo minguar.
O celular quase não toca mais. As amigas da minha mãe aos poucos se afastaram. A casa antigamente vivia cheia de amigos, parentes e vizinhas. Minha mãe adorava cozinhar e receber pessoas. As visitas dos familiares estão cada vez mais espaçadas, minha filha segue estudando e trabalhando e mal vem me visitar. Ela aparece aos domingos para ver a avó e falar comigo. Sempre com pressa, mal toma um café, ela diz que trabalha de segunda a sábado e que sobra apenas o domingo para fazer muita coisa, as horas parecem correr, mas ela nunca as alcança. Enquanto passo um café ela me conta como foi a semana, nessa hora fico olhando para ela, na cozinha, sentada, me vejo mais jovem. Ela é muito parecida fisicamente comigo e isso me dilacera. Eu já tive a pele sedosa, cabelos compridos lindos, com brilho, eu passava horas cuidando, hidratando, meus cachos eram minha paixão, unhas sempre feitas por uma ótima manicure, usava maquiagem e roupas bem cortadas, trabalhava fora, vivia sorrindo.
Passando a mão pelo meu rosto sinto as crateras em forma de cicatrizes que se instalaram aos poucos, meu corpo combalido não lembra em nada a mulher potente que fui, que trabalhava fora, namorava, fazia cursos e tinha muitos planos. Meu olhar entristecido eu evito encarar, não tenho mais espelhos pela casa. Dormir oito horas seguidas virou um luxo ao qual não tenho acesso. É como se fosse um bem precioso, inacessível para mim.
Nossa casa foi comprada pelos meus pais, resultado de décadas de trabalho e precisa de uma reforma.
Minha rotina me atropela: trocar fraldas, trocar lençol mijado porque a urina escapou, dar banho, mover o corpo de minha mãe par evitar escaras, coloca-la para tomar sol na cadeira de rodas, atender aos gritos dela quando dormindo tem pesadelos, a certeza de ter que fazer comida para nós duas todo santo dias, a falta que faz o auxílio de uma cuidadora que não consigo pagar esfola meu juízo. Minha mãe é aposentada, sempre trabalhou e com o dinheiro da aposentadoria dela e da pensão modesta que meu pai deixou, eu compro os muitos remédios que ela toma.
O banho é o meu momento, pausa para descansar e para chorar. No nosso quarto eu evito derramar lágrimas, pois minha cama fica fica ao lado da minha mãe, o quarto é enorme. Também não quero preocupá-la. Quando desaguo não me controlo, a tristeza transborda pelos meus olhos. Uma vez minha mãe me ouviu soluçando e perguntou se eu estava bem. Desajeitada não sabia o que dizer, ela fez tanto por mim, eu a amo, não cuido somente por obrigação legal, sei o esforço que ela fez para me criar, eu sou grata por tudo, principalmente depois que ficou viúva.
Quem cuida de quem cuida?
Acordo de madrugada e nem sempre consigo dormir de novo. A pergunta fica ressoando na minha cabeça.
Meu irmão caçula mora no exterior desde que teve uma oportunidade de trabalho . Minha irmã um ano mais velha do que eu mora em outro estado. Os dois colaboram com dinheiro, nada expressivo, suficiente para compra de fralda, pomadas e alguns remédios. As mensagens perguntando pela nossa mãe eram mais frequentes, até elas estão rareando.
Sentindo que minha alma está soterrada debaixo de escombros emocionais, atolada pelos fatos irremediáveis, eu me pergunto mentalmente, dia e noite, quem cuida de quem cuida? Não tive coragem de verbalizar nem para minha filha o que todos podem perceber sem esforço, mas parecem não enxergar: minha vida se desfacelando.
Eu me questiono: quem cuidará de quem foi cuidadora?