Observatório

—Boa tarde, você sabe me dizer quantas horas? Meu celular acabou a bateria na viagem e esqueci meu carregador na rodoviária quando saí correndo para embarcar. 

— São 17 hs.

— Detesto esperar. Estamos viajando desde ontem à noite. 

— É chato mesmo.

— Estou esperando meu ex-namorado aqui. Ele é pai da minha filha. Ju fala oi para a moça.

A criança que estava ao seu lado deveria ter uns 4 anos. Não estava com vontade de conversar e muito menos conhecer alguém. Eu também estava viajando sozinha e com muitos problemas para resolver. Sorri para a menininha. Reparei que estavam com duas mochilas e uma sacola grande. Ju choramingou que estava cansada e com fome. A mãe tirou uma toalha de banho da mochila, forrou a areia.

— Come este pacote de biscoito meu amor. É todinho seu, não precisa dividir com a mamãe. É só seu. Depois deita na sua toalha e tenta dormir. Aqui está fofinho, é areia, não o chão duro em que dormimos os outros dias. Fecha os olhos e escuta as ondas do mar. Elas contam histórias.

— Mamãe eu quero uma cama de verdade. Que horas vamos chegar na casa do papai?

Continuei minha caminhada pela praia. O encanto acabou, tirava fotos, colocava o pé na água fria, corria de umas ondas e pensava naquela menina, com outra menina menor ainda, sem um celular, esperando alguém vir resgatá-las. Minha cabeça imaginava procurava respostas. De onde vieram? Como alguém larga tudo e vem para uma cidade desconhecida, morar com um desconhecido? Parece que vieram de longe, Ju está muito cansada e insegura. O que aquele ser de quatro anos já passou? Quantas histórias ela tem para contar? Como estas duas se ajeitarão se este ex-namorado não aparecer? Elas têm onde ficar? Têm recursos para pagar?

A minha caminhada não mais me pertencia. De repente abriu um mundo à minha frente que eu desconhecia ou teimava em não conhecer. Como estou segura no mundinho criado, alimentado e defendido por mim mesma. Que bundona que eu sou que não enxergo nada além dele. Que merda de ser humano sou eu e muitos outros que eu conheço, que não se preocupa, finge que não existe ou nem consegue perceber que tem gente como a Juliana e sua mãe. Dei meia volta. Não poderia dormir esta noite se não soubesse o que foi feito delas. Voltei pela praia e de longe vi Juliana dormindo na toalha e sua mãe sentada na areia, olhando o movimento do mar e das pessoas. Será que tudo que essas duas têm estão naquelas mochilas e sacolas? E se o namorado não aparecer? Chamei um ambulante, comprei duas empanadas, duas latinhas de suco, duas garrafas de água mineral.

— Por favor leve esse lanche para aquela pessoa sentada na praia do lado da criança dormindo. Não precisa dizer de quem foi. Só entrega e diz que está pago.

Sentei em uma mesa de um restaurante que me dava uma boa  visão delas sem que ela me visse. A mãe recebeu o lanche procurou em volta com o olhar para ver se reconhecia alguém. Agradeceu, acordou a Ju e sentaram para comer na areia mesmo.

Pedi uma cerveja só para continuar sentada sem ser vista e observar. Estavam famintas, comeram muito rápido, beberam o suco e a água toda. O lanche foi pouco, deveria ter comprado mais. Onde está esse sujeito que não aparece? Como alguém pode ser tão irresponsável e perder o único carregador que tem? E essa criança não tem outros parentes? E porque eu não chegava perto, oferecia meu celular para a mãe fazer a ligação e não ajudava a localizar o pai ausente? Não me afetar, não me implicar. Estou de férias e não tenho tempo para resolver problemas que não são meus. O que me deu para estar até agora vivendo e imaginando o drama de duas pessoas sentadas na praia?

Peço a conta, saio do restaurante. Olho no celular, já se passaram três horas desde que ela me perguntou as horas. Chego na porta do meu hotel e volto. Não consigo entrar. Preciso saber se elas ainda estão esperando. Volto para a praia, não as vejo sentadas. O ex-namorado chegou, ufa! Vou tomar um banho e descer para a piscina. Hoje no restaurante do hotel tem jantar com música ao vivo.

Sem entender e nem querer entender porque fiquei tocada pelas duas e porque não pensei em chegar perto para resolver, desci para o jantar. Noite fresca, muita brisa, boa comida e música melhor ainda. Dormi em paz.

Nos próximos dois dias caminhei indo e voltando pela areia da mesma praia muitas vezes, meu olhar andava por muitos locais procurando o que, agora eu sei, eram as duas pessoas. No terceiro dia, estava sentada numa barraca de praia mais distante. Levantei o olhar e vi a Ju sentada na mesma toalha brincando com um baldinho de praia. A mãe passava de mesa em mesas vendendo doces. Pareciam cocadas. Fingi não conhecê-la e ela não me viu. Passei o dia nesta barraca. À tardinha, vi um homem chegar perto da Ju e brincar com ela. A sua mãe tirou o dinheiro do bolso do avental que usava e entregou ao homem. Ele sentou na toalha, contou as notas, levantou-se e deu vários tapas na mãe da Ju.

— Piranha preguiçosa. Como acha que vai pagar as suas contas aqui? Você não vendeu nada do bagulho, só estes doces fedidos. Você ainda não entendeu? Eu tenho uma cota de venda  e presto conta disso todo dia. Você não volta para casa, ainda não acabou de trabalhar. Vai lá no centro  até vender tudo e leva esta menininha chorona com você. Volta para casa com tudo vendido entendeu?

E eu?  Mais uma vez observava, de longe, sem ser vista.

Márcia Cris Almeida

23/09/2024