Espiritualizado

Recebo todos os passageiros com um bom dia, ou boa tarde, não trabalho à noite. Não tenho estrutura nem vontade de rodar pelas noites de São Paulo, o dia é o horário ideal para mim. A noite foi feita para festejar, curtir com os amigos, e até também para descansar, repor as energias.

Meu carro é organizado, cheiroso, coloco uma leve fragância no aromatizador de ambiente, cheiro suave de eucalipto que transmite a sensação de limpeza, mantenho o carro limpo, meu porta malas também está ajeitado, tudo no seu devido lugar. No trabalho e na vida sou um autêntico virginiano.

Antes de dirigir exerci outras profissões, duas ao mesmo tempo, inclusive, coisa que faço até hoje, sou músico, toco cavaquinho, instrumento que aprendi na adolescência. Fui fazer aula de violão com um vizinho muito simpático que colocou uma plaquinha no portão "Aula particular de violão". Eu que sempre adorei música desde criança, era curioso e perfeccionista logo descobri minha paixão, um instrumento pequeno, parece um mini violão, delicado e difícil de tocar, que eu nunca tinha visto pessoalmente e que se chamava cavaquinho.

Minha namorada atual sabe que eu trabalho como motorista de carro de aplicativo e que toco na noite, como músico volante em algumas bandas e que amo fazer as duas coisas e não pretendo largar nenhuma delas, e estamos em paz porque ela entende isso. Uma amiga em comum nos apresentou. Aduki, ou Duh , como eu a chamo, é uma taurina muito centrada, nós combinados muito e sou feliz pelo universo ter nos proporcionado esse encontro.

Eu busco mesmo estando durante horas dirigindo no trânsito pesado, rodando por bairros nem sempre seguros, manter a calma. fazer o meu melhor, com um sorriso no rosto e a tranquilidade porque sabe que as coisas são como são, ruas cheias de carros, motoristas nem sempre atentos, na rua tem de tudo.

Não posso reclamar dos meus passageiros nem de tocar na noite. Meu dia começa com calma, bem cedo, depois de um banho e um café da manhã reforçado e minhas orações, sou budista e esse fato gera curiosidade. No painel do carro coloquei uma bandeira pequena que simboliza o budismo, o que gera a curiosidade de alguns passageiros, apenas os observadores. Os passageiros falantes, mais simpáticos e os curiosos perguntam sobre a bandeira, se sou vegetariano, e outras coisas engraçadas, logo respondo que amo fazer churrasco e que nem todo budista é vegetariano, tem várias vertentes, digamos assim. Sempre estou escutando música baixinho. Gosto de ouvir bandas de samba e pagode com cavaquinistas que eu admiro . Minha playlist é caprichada, tem todos os nomes dos principais mestres do cavaco brasileiro de todos os tempos. tem muitas músicas, claro, do Waldir Azevedo.

Tem passageiro que gosta de samba, pergunta sobre a música, e pede até para eu aumentar o volume, coisa que aconteceu umas duas ou três vezes, com passageiras. As mulheres costumam ser simpáticas, menos fechadas. Se posso escolher entre duas corridas na mesma hora eu pego a que tiver uma passageira e não um passageiro. Uma ou outra mulher entra no carro sisuda, distante, em geral, elas são simpáticas e educadas. Ahhhh as mulheres. Elas são seres evoluídos, eu adoro conviver com elas.

Tem passageiro que não interage, não responde nem meu bom dia, entra no carro com a cara feia e o olhar perdido, distraído, eu procuro não me incomodar com isso. Cada um tem seu jeito e às vezes as pessoas não estão num bom dia. O celular suga a atenção das pessoas para a tela. Tecnologia é bom, pode ser uma ferramenta muito útil, eu mesmo trabalho o dia todo conectado ao celular e é por mensagens que recebo o contato dos produtores das bandas, mas se mal usado pode servir para tornar a vida das pessoas ainda mais vazias.

Minha fé me ajuda no dia a dia, sou calmo e atento e isso na direção é muito bom. Eu era cético até conhecer há muito tempo atrás o budismo. Um amigo que era budista me falou maravilhas e me convidou para visitar um templo que fica no interior. Eu fui apesar de ter zero interesse no templo ou em religião. Logo eu estava interessado, voltei nesse mesmo templo para uma visita mais demorada e comecei a estudar o assunto, fiquei encantado.

Não mudei minha rotina nem deixei de comer nenhum alimento. Aos poucos fui incorporando algumas práticas budistas na minha rotina e sentindo que encontrei meu lugar no mundo.

Gosto muito de ser humano, de lidar com gente, de ter contato com bastante gente, às vezes, dezenas de pessoas em um mesmo dia aceitando corridas que cortam a cidade. No meu carro já entrou uma família, todos muito tristes, indo para um cemitério para o enterro de um familiar querido e logo em seguida, na saída da avenida onde fica o cemitério, um homem aflito parou meu carro, na hora eu me assustei, esse homem pediu que eu levasse a sua esposa para uma maternidade, ele estava sem carro e a criança resolveu nascer, a bolsa tinha estourado. Eu encantado levei o casal para uma maternidade da região. Morte e vida no mesmo dia. Ter contato com tanta gente é ver muitos CONTRASTES.

Manuh Danorte
Enviado por Manuh Danorte em 16/09/2024
Reeditado em 20/09/2024
Código do texto: T8153079
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.