A Carcereira (Ou Carandiru)

Parece que estou vendo ela sorrir na minha frente, quantas histórias que vivemos juntas, como Marcelina me faz falta, quase todos os dias penso dela. A vida não é justa. Tanta gente ruim morre com cento e tantos anos.

Marcelina era doce, engraçada, amiga, generosa, tinha alguns poucos defeitinhos, adoeceu, foi um susto, sofreu muito com dores lancinantes, e morreu cedo, tenho em vista que tanta gente chega com saúde aos 90 anos ela morreu jovem, antes de completar setenta. Tinha tanto pra gastar! O tempo pode passar, mas sua memória não se desmancha. Ela parece cada dia mais viva dentro de mim.

Marcelina cozinhava como uma deusa que desceu a terra. Era festeira, a sua casa vivia cheia, ela tinha o dom da multiplicação da comida. Nunca faltava arroz e feijão nas panelas, nem café fresco para alguém que chegasse sem aviso, e como chegavam sem avisar os amigos dela, suas colegas de trabalho mesmo após sua aposentadoria, suas vizinhas e vizinhos, seus amigos, as amigas de suas filhas. O povo parece que vinha atraído pelo cheiro delicioso vindo do fogão. Como nos desenhos animados a fumaça perfumada atraia o visitante que quase flutuava pelo caminho para perguntar salivando : “o que você está fazendo que cheira tão gostoso?”.

Difícil pensar que uma pessoa tão bem humorada, amiga, parceira, doce e justa trabalhava em um ambiente tão áspero quanto um presídio que na minha fantasia era uma bomba-relógio. O presídio feminino ainda está ativo e fica na zona norte da cidade, perto de um shopping e uma avenida cheia de bares. Coisa que parece estranha se analisada hoje, mas que fazia muito sentido há décadas quando ele foi construído, aquela região da cidade, perto de Santana, era um brejo, com mato e lama, considerado quase o fim do mundo. O tempo passou e o entorno ganhou vida, bairros bons cheios de casas de todos os tipos e estações do metrô.

O presídio feminino sobreviveu ao tempo, às mudanças, a implosão do Carandiru, gigantesco e famoso no país todo por conta das notícias sobre rebeliões, por conta do Dr. Dráuzio Varella e dos 111 homens mortos pela polícia. Vi e revi muitas vezes o filme Carandiru no meu antigo aparelho de DVD. Ficava impressionada reparando detalhes, coisas que não tinha notado das outras vezes. Comprei o livro também, mas nunca terminei a leitura.

Marcelina trabalhou onde para mim era a sucursal do inferno criou suas filhas, sem faltas, nem atrasos, uma dedicação quase religiosa por décadas até se aposentar. Com o salário que nem era muito mudou a vida de toda a família. O marido era muito trabalhador, mas não tinha estudo, as filhas pequenas na época, os gastos eram muitos, o casal tinha tido uma vida sofrida, típica de quem nasceu num meio muito pobre, onde não faltava comida, mas faltava praticamente todo o resto. Nenhuma novidade.

Minha amiga era gentil com familiares e amigos , sempre bem humorada. Ela dizia que o cavalo só passa selado na nossa estrada uma vez. Ela subiu nesse único cavalo na sua estrada de terra da época, segurou-se em sua crina, foi em frente, equilibrando-se, até alcançar o seu destino que era a estabilidade do serviço público. Seu objetivo era dar uma vida melhor para suas filhas, viver com algum conforto ao lado do seu marido querido e seu cachorro vira-lata caramelo, o Guardião, que viveu uns dezesseis anos. Ela havia frequentado por poucos anos a escola quando era criança, adulta, foi estudar à noite, no supletivo em uma escola pública. Estudar era como realizar um sonho.

Eu tentava mas não conseguia imagina- lá trabalhando com os presidiários. Para mim era como se algo não se encaixasse, como ela dava conta daquela rotina? Era possível gostar de trabalhar numa cadeia ? Ela continuava sorridente e generosa.

Marcelina adorava bichos. Levava ração, arroz, legumes picadinhos para colocar em potes nas ruas, guardava potinhos plásticos para colocar água fresca para cachorros e gatos, nenhum bicho perto dela passava fome, nenhum ficava sem uma pomada caso se machucasse e muito menos era maltratado por humano sem piedade enquanto ela estava por perto. Ela que era uma doçura de pessoa virava uma besta fera se alguém ousasse chutar um cachorro que morava na rua ou enxotar um gato que pulava de telhado em telhado.

Justa, generosa, amiga, boa mãe, irmã querida, esposa amada, vizinha simpática, colega de trabalho agradável, cuidadora dos bichos que precisassem de algo, ela improvisava uma casinha e não deixava nenhum serzinho dormindo no sereno. Os bichos da vizinhança que não tinham dono aos poucos foram sendo todos castrados. Um vizinho ajudava com a carona, outro com remédio. Ela queria mas não podia levar todos os animais abandonados na rua para sua casa, mas não deixava nenhum deles desassistido.

Seu coração de cidadã amorosa e consciente não negava água, comida, um cobertor ou uma cobertinha para nenhum ser vivo.

No presídio era querida por funcionários e por ex-presidiárias. Ela comentava que recebia cartas de homens e mulheres contando como estava a vida longe das grades em outros estados, bem longe de São Paulo. Eu sabia que algumas delas ligavam para dar os parabéns no aniversário e contar como estava se virando após cumprir as penas. Ela adorava conversar pelo telefone e ouvir as notícias de que fulana estava estudando e que a outra estava trabalhando, construindo aos poucos uma carreira profissional. Ela era sábia, escutava cada pessoa com atenção e parece que tinha sempre a palavra certa para acalmar um coração aflito.

Quando passo pela estação Carandiru sinto um aperto no peito e lembro de ver no passado de dentro do vagão o presídio, muitas janelas pequenas, com camisetas penduradas nas grades, a sensação que eu tinha era de sufocamento. Ali agora fica o Parque da Juventude e de longe, na plataforma, esperando o trem fico observando o portão de entrada e as árvores, enormes. Não vou mais para a zona norte com frequência.

Não me esqueço do dia que não contive minha ansiedade e perguntei enquanto ela passava um café como tinha ido trabalhar como carcereira no presídio. Eu achava que aquele trabalho não combinava com você, mas não tive coragem de te dizer isso.

Você se virou para mim e me olhou por um minuto , depois respondeu sem rodeios que tinha estudado muito para passar num concurso público para a vaga de agente penitenciária, que trabalhou no presídio masculino na revistando as visitas, na entrada, por bastante tempo e depois da desativação dos prédios onde estavam presos sete mil homens você foi para transferida para presídio feminino para exercer a mesma função, logo depois você mudou de assunto. O que acontecia no trabalho deveria ficar lá.

Sentindo um nó na garganta penso o quanto eu queria poder ouvir de novo sua voz, sua gargalhada, tomar seu café comendo bolinho de chuva, nunca mais comi um tão gostoso, te pedir conselhos, te contar o que eu não diria nem para minha mãe. Meus olhos ficam úmidos e minhas bochechas sentem uma água quentinha escorrendo quando penso no que você me responderia se eu pudesse te dizer que mudei de casa e dei um pé na bunda depois de levar mais um chifre. Homens ! Você ria das minhas histórias dramáticas e comentava que eu não tinha jeito. Dizia certeira : "Logo você para de sofrer por esse traste e se apaixona por outro".

Se todas fossem iguais a você, que maravilha viver, como dizia o poeta.

Manuh DaNorte
Enviado por Manuh DaNorte em 16/09/2024
Reeditado em 12/11/2024
Código do texto: T8153078
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