O silêncio do ninho 

 

Gio estava sentada lendo com a janela do quarto aberta quando sentiu que um pequeno pássaro pousou em seu cabelo. Achou engraçado e deixou que ele penetrasse os seus cachos e ali se aninhou. Veio outro pássaro  e ficou em cima da cabeça dela cantando um som melodioso. Quando sua mãe entrou no quarto, preocupada em pegar as roupas para lavar, os dois pássaros voaram pela janela." Vamos pentear o cabelo para ir para a escola " ela disse sem notar os animais cantantes .  

Gio deixou que sua mãe penteasse seu cabelo deixando a parte crespa e volumosa solta em sua cabeça. Ela penteou, hidratou e delineou os cachos. E fez algumas tranças na parte que pendia pelo pescoço. 

Gio era uma menina cujos cabelos crespos eram tão volumosos e rebeldes quanto sua imaginação. Os fios pareciam ter vida própria, dançando ao vento como se estivessem sempre em busca de aventuras. 

Quando voltou da escola, os passarinhos retornaram  com a intenção de fazer um  ninho em sua cabeça.

Não lhe parecia  estranho,  achando tudo muito divertido. Os pequenos  cantavam melodias suaves que pareciam contar histórias de mundos distantes enquanto ela corria e girava, criando um espetáculo de cores e sons sozinha em seu quarto. 

Dos  dois pássaros,  agora havia três ovinhos bem perto da sua orelha. E um dos pássaros que se alojava ali cantava baixinho. 

Agora que tinha seus novos companheiros não deixava que a mãe penteasse seu cabelo, estava sempre bem penteado e cuidado pelos passarinhos. 

A mãe estranhava : " Tem um galho no teu cabelo" e Gio puxava devagarinho entregando a mãe. " Para de brincar nas árvores, a primavera é  das flores e dos pássaros.  É  época de fazer ninhos . " Gio saia sorridente para o quintal. 

E logo os ovinhos se partiram e três filhotes piavam sem parar. Até na escola, quando se fazia silêncio na sala de aula, alguma criança dizia ouvir um piado de pássaro. E a professora  insensível  dizia : " Besteira, menino, não tem passarinho aqui. " 

Certa tarde, enquanto dançava sob a luz do sol, um filhote de passarinho desajeitado caiu de seu ninho improvisado. Gio parou imediatamente. O pequeno pássaro piava desesperado tentando voar sem sucesso. Com delicadeza, ela se agachou e pegou o filhote nas mãos sentindo seu coração batendo rápido sob as penas macias.

"Não se preocupe," sussurrou , olhando nos olhos do passarinho. "Eu vou cuidar de você." Com essa promessa em mente, ela decidiu levá-lo para cama e fazer um novo ninho em seu quarto, cercando-o de amor e carinho.

Os dias passaram em um turbilhão de risos e canções. O filhote cresceu sob os cuidados de Gio, aprendendo a voar e a cantar junto com os outros pássaros que habitam sua cabeça.Àquela  altura muitos pássaros vieram visitar a nova família. A menina sentia-se viva e cheia de alegria, como se pudesse alcançar qualquer sonho que desejasse.Sentava-se em sua poltrona, com um livro entre as pernas deixando seus amigos balançarem em suas tranças e cantarem em seus ouvidos. 

Quando sua mãe entrava no quarto eles não voavam mais e  sim , se aninhavam todos dentro dos cachos da menina. 

No entanto, um dia cinzento chegou sem aviso prévio.Já era outono e os filhotes já crescidos faziam voos rasantes pela janela mas não largava o ninho seguro e silencioso dos cabelos  de Gio. Porém , Gio começou a perceber que sentia-se cansada perto dos novos amigos , algo que ignorava a principio como sua mae também que dizia ser pelo calor excessivo do verão . Ela passava mais tempo sentada sob a sombra da mangueira frondosa de seu quintal.   

Mas junto ao cansaço sentia que suas pernas tremiam e seu sorriso desapareceu aos poucos. Após visitas ao médico, veio o diagnóstico: leucemia. A notícia foi como uma tempestade que despedaçou seu mundo encantado

A mae sentia-se culpada como se não tivesse podido proteger o bastante a filha . Abalada por não aninhar toda a fragilidade da sorridente e feliz filha .

Mesmo assim, Gio não desanimou. Em seu quarto, cercada por medicamentos e livros sobre pássaros, ela lembrava-se do filhote que havia salvado. Enquanto enfrentava os tratamentos dolorosos, o passarinho adulto que havia crescido em sua cabeça não deixou de cantar todas as manhãs ao amanhecer.. Sentindo sua vitalidade cada vez mais esmorecer, Gio se inspira nos amigos alados  que resistem às intempéries da natureza. Eles continuam cantando mesmo com a chegada do inverno . Ela sorria em seu canto silencioso.

Já bem adoecida vê na liberdade do voo dos pássaros a esperança de cura ao mesmo tempo que percebe que sao seres frágeis, delicados, com a própria doença que acomete seu corpo humano.

Os dias difíceis tornaram-se mais suportáveis com a melodia suave do passarinho pela janela. Era como se ele estivesse lhe dizendo: "Você não está sozinha." A música preenchia o ar com esperança e lembranças da liberdade que a vida ainda poderia oferecer.

Com o tempo, Gio encontrou força dentro de si mesma. Assim como os pássaros que habitam sua cabeça, ela aprendeu a levantar voo mesmo quando as nuvens pareciam pesadas demais para suportar. E cada vez que um novo filhote caía em seu ninho imaginário ou na vida real, ela sabia exatamente o que fazer: cuidar deles com amor e coragem.

E quando seu cabelo caiu por completo devido a quimioterapia ainda ouvia o canto dos pássaros como amigos fieis. Assim como os pássaros que tem suas plumagens que os identifica , os cabelos de Gio faziam parte de sua peculiar identidade. Sua essência parece se extinguir mas sabe que ao renovar sua plumagem os pássaros têm a capacidade de se reerguer . A queda das penas era um ciclo de renascimento. Gio viu seus cabelos serem folhas ao vento, deixando parte de sua identidade para trás, mas também abrindo espaço para a promessa de novos começos. A cada fio de cabelo que se desprendia, ela sentia-se com uma pequena ave em sua muda, vulnerável e exposta, mas sabendo que após a tempestade da perda surgiria uma nova plumagem que iria refletir a forca que havia dentro dela: “ Mamãe meu cabelo vai crescer de novo, com pluma de passarinho . “   Para Gio seus amigos não tinham medo de mudanças 

E assim, mesmo nas noites mais sombrias da doença, enquanto as estrelas brilhavam lá fora, o passarinho cantava em sua janela,Gio nunca perdeu a esperança de que um dia voltaria a dançar sob o sol com seus amigos emplumados sobre sua cabeça.

Por fim os dias ficaram mais frios e ela mais cansada.  Da janela do hospital  viu um Ipê rosa florescer , como era de costume no inverno, e seus amigos migraram para lá para fazer companhia para ela. 

Gio sussurrava para si mesma que apenas se preparava para um voo onde a dor e a luta se transformavam em leveza e liberdade. Isto era o abraço suave do vento,a eternidade da alma .

 

E quando suas mãos  ficaram frias entrelaçadas às mãos de sua mãe que não conseguia conter o pranto, ela pediu : " Mamãe,  abre a janela e vai lá fora olhar o céu , estarei cantando para sempre para você junto aos meus amigos alados” . Sozinha no quarto começou a sentir um  calor antigo em sua cabeça que se enchia de cachos volumosos e tranças em formato de galho    E sobre a sua cabeça pousaram dois pássaros e três filhotes. E cantaram enquanto seus olhos fechavam.  

 

 

 

 

Ana Pujol

 

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 16/09/2024
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