Dona de si
Dona de si
Passava das 22 horas quando a discussão começou. Não era a primeira vez, nem seria a última. Motivo? Insignificante. O arroz que esfriou no prato, a camisa que não brilhava como deveria, o chão da casa que, segundo ele, clamara por uma faxina mais caprichada. Pequenos detalhes transformavam-se em farpas afiadas, lançadas sem piedade na direção dela. Cada palavra parecia um tijolo, erguendo um muro entre o que um dia ela acreditou ser amor e a realidade cruel que a cercava.
As unhas quebradas eram uma testemunha silenciosa de tantas louças lavadas às pressas. O cabelo, outrora brilhante, agora só conhecia o shampoo aos sábados, quando o ritmo frenético da semana lhe permitia um respiro.
Ela acordava antes do sol para preparar sua banca de frutas na feira, a quilômetros de distância de casa. No meio disso tudo, ainda havia o curso que não queria largar. E claro, havia ele. Sempre ele, com suas reclamações, com seu jeito de minimizar tudo o que ela fazia, enquanto ela acreditava que ele, um dia, poderia mudar.
As noites tornaram-se um ritual de lágrimas abafadas no travesseiro. E o tempo, implacável, passou. Ele não mudou. Ela, sim. Mudou tanto que mal se reconhecia. A vaidade, que antes lhe trazia algum consolo, foi jogada fora junto com os sonhos. As roupas? Sempre as mesmas, porque o pouco dinheiro que sobrava depois das despesas da casa ia direto para ajudar nas contas que ele mal dividia com ela. O corpo, que já foi fonte de orgulho, agora carregava quilos de cansaço e o brilho nos olhos? Esse desapareceu sem deixar rastro.
Ela pensou no divórcio. Pensou, mas logo afastou a ideia. O que diriam dela? Uma mulher que falhou no casamento. Quem iria querer ouvi-la, muito menos apoiá-la?
Um dia, no meio da feira, o corpo cedeu. Ela desmaiou, ali, no meio da multidão de clientes apressados e mercadores distraídos. O desespero tomou conta de todos, mas a sorte interveio em forma de um médico que, por acaso, estava passando por ali. Ele a socorreu, com gestos rápidos e eficientes, e ela acordou com olhos desconhecidos, mas gentis, fitando-a.
Depois daquele dia, o doutor passou a frequentar sua banca. Não mais por necessidade, mas por costume. Ele comprava frutas, verduras, conversava, sempre com um sorriso leve e um elogio sincero. Aos poucos, sem que percebesse, ela começou a se olhar no espelho com outros olhos. Não era mais o reflexo de uma mulher apagada. Aquele homem a lembrava, com seus gestos simples, que havia mais nela do que as críticas do marido lhe faziam crer.
Sem perceber, ela foi ignorando as farpas em casa. Seu sorriso se tornou mais frequente, seus olhos, mais vivos. E quando o marido lançava sua costumeira reprovação, ela simplesmente não dava mais espaço para que suas palavras a tocassem.
Tudo o que ela precisou foi de um gesto. Um pequeno ato de gentileza para se lembrar de que a vida pode ser mais leve, de que ela era merecedora de respeito, de que poderia, sim, ser feliz.
"Puritana!" Ele gritou, com a voz carregada de ódio. Ela, por um momento, hesitou. Não era medo que a paralisava, mas sim a estranha paz que vinha do alívio. Pela primeira vez, em anos, ela disse tudo o que guardava no peito. "Quero o divórcio. Não aguento mais. E sim, me apaixonei por outro homem." Aquelas palavras soaram como um trovão na casa que por tanto tempo conheceu apenas o silêncio das lágrimas reprimidas. E, sem que ela esperasse, a violência veio. Ele a golpeou com uma raiva cega, como se o fato de ela finalmente dizer a verdade fosse um crime imperdoável. Mas ela sabia, em seu coração, que o adultério não era dela. Ela nunca havia traído. As feridas que carregava eram de um amor que nunca existiu de verdade.
As marcas no corpo foram as primeiras e, ela prometeu a si mesma, seriam as últimas. No momento em que ele a atingiu, algo dentro dela se rompeu de vez — e não era dor o que ela sentia, mas libertação. Ao levantar-se, com o rosto ainda ardendo e o corpo dolorido, ela percebeu que estava livre. A dor física seria temporária, mas a liberdade que acabara de conquistar era eterna.
Ela se mudou de casa, levou consigo apenas o necessário e, de cabeça erguida, seguiu em frente. Terminou seu curso com dedicação renovada, e com o tempo, seu sonho de ter um restaurante se materializou. Agora, na cozinha que era sua, ela comandava com a mesma força que a manteve em pé durante todos os anos difíceis. Seu restaurante não era apenas um negócio, era o símbolo de sua independência. Cada prato que servia, cada cliente satisfeito, era uma prova de que ela, enfim, havia se tornado dona de si.
O médico, o homem que despertara nela a centelha de esperança, perguntou por ela várias vezes na feira. As pessoas comentavam, mas ela nunca o procurou. Não porque não fosse grata, mas porque entendeu algo maior: o amor que precisava não vinha de outra pessoa. Vinha dela mesma. O gesto daquele homem foi o empurrão que ela precisava, mas a jornada era dela e ela estava disposta a percorrer sozinha, se fosse preciso.
Agora, quando se olhava no espelho, ela não via mais uma mulher quebrada. Via alguém que aprendeu a se amar, a se respeitar, e a se valorizar. E, naquele momento, compreendeu a lição mais importante de sua vida: o amor por uma vida digna, por si mesma, valia mais do que qualquer relacionamento. O respeito que ela buscava não precisava vir de fora, porque bastava que ela mesma se respeitasse.
E assim, cada novo dia era um recomeço, com mais brilho nos olhos e leveza no coração. Afinal, ela havia escolhido a si mesma, e essa era a maior vitória de todas.