Seu Maneco

As lágrimas escorrem quase ao mesmo tempo que abro um sorriso, mexendo nos bilhetes, cartas, diários, cadernos, muitas fotos, fitas gravadas, uma pasta com ingressos desbotados de cinema que foram guardados por décadas (?) pelo meu pai e que estavam cuidadosamente acomodados em muitas gavetas da casa por onde ele viveu por anos até o dia da sua morte depois de passar poucas semanas doente em um hospital. Dentro do guarda-roupa encontrei mais cadernos de brochura, alguns com capa dura, e seus discos de vinil intactos dentro de antigas e preciosas malas de viagem.

Manoel soube ser filho, irmão, amigo, pai, vizinho, companheiro, colega de trabalho, namorado e marido e por conta do sorriso largo e da simpatia deixou saudade pelos muitos lugares por onde passou durante seus quase 80 anos de existência.

Somente agora que Maneco nos deixou eu me dei conta da quantidade de pequenas lembranças ele guardou, com capricho e cuidado, para que durassem muito tempo. Estranha preocupação essa de registrar o presente para ser revisitado no futuro. Ele gostava de filmar e tirar fotos, cada aniversário dos filhos, dos amigos, os passeios com as crianças, até a reforma do quintal ganhou um registro em vídeo. Ele manteve ao longo dos anos o hábito de escrever no fim do dia e para isso tinha sempre um caneta e um caderno na escrivaninha enorme, de madeira maciça, que está órfã agora e continua no seu quarto.

Ele comentava que durante a vida recolheu muitas memórias, mas nunca imaginei que fosse tanta coisa. Filmes em Super 8 são muitos, centenas de fotografias preto e branco e coloridas de todos os tamanhos, cadernos e mais cadernos lotados de histórias escritas com letra caprichada, (quase) sempre com caneta azul. Ele era preciosista. Numerava as folhas. Estava produzindo um acervo!

Sua casa parece que ainda tem seu cheiro. Tenho a impressão quando entro na casa agora vazia que ele vai aparecer e me chamar para tomar um café fresquinho. É quase inacreditável que aquele corpo magro, debilitado, com aparência envelhecida que enterramos no cemitério seja o mesmo pai vibrante e cheio de energia que conheci.

Ele afirmava constantemente que a saudade pode ser aplacada quando temos boas recordações. Quanta sabedoria. Pena que não tive tempo ou ideia de perguntar para ele o que o motivava à guardar no seu baú-casa tantos registros agora esmaecidos da sua rotina.

Meus pais se separaram quando eu iria entrar na adolescência. Mesmo morando em outra casa, depois casou de novo e teve mais filhos, ele sempre esteve presente nas nossas vidas. É com saudade que ele será lembrado. Como alguém querido, cativante, engraçado, bem humorado.

Junto com os cadernos encontrei numa caixa pequena os bilhetes e cartões dados por nós, os filhos, em aniversários, natal, páscoa e dia dos pais. Abrindo as gavetas tenho a impressão de que não vou parar de achar seus tesouros.

Hoje faz dois meses de sua morte. Cada semana tem sido uma etapa não para superar o luto, mas para vivência lo. Superar é uma palavra enganosa. A vida não é uma corrida com obstáculos. O luto não é uma prova olímpica. Não sei descrever o quão dolorido é esse processo, nem sei se ele terminará um dia, dentro do meu peito.

Na primeira semana foi muito angustiante.

A missa de sétimo dia marcou o fim de uma fase. Eu ainda estava chorando muito, em alguns momentos durante o dia eu soluçava e em outros lembrava de você contando uma história, algo singelo e sentia que me conformava lentamente, até abria um sorrio. A sua ausência agora é marcante.

Depois de uns dez dias do seu enterro embalamos as suas roupas, sapatos e alguns objetos e doamos. Eu e meus irmãos. Organizado ele sempre foi. A casa estava limpa, pois uma faxineira ia regularmente limpa la. Suas roupas estavam passadas. Algumas ainda com cheiro de amaciante. Achei no cesto de roupa para lavar um pijama seu esquecido. Emocionada percebi que ele ainda tem seu perfume.

Fizemos a missa de um mês. Seus amigos e colegas lotaram a igreja. Foi bonito de se ver. Dessa vez também chorei bastante. Vários amigos seus estavam emocionados lembrando com saudade do seu bom humor e da sua empatia

Havíamos conversado sobre o que seria feito com seus objetos após sua partida e você nos pediu- para nós, filhos- que gostaria que as doações fossem feitas para uma casa se repouso na região. Você visitou o local muitas vezes e achava que suas coisas e roupas poderiam ser úteis para eles. De novo você tinha razão. A casa atende famílias com boa condição financeira e outras, nem tanto.

Eu escolhi ficar com as fotos, os filmes, a máquina fotográfica, uma filmadora antiga que talvez nem funcione, alguns dos seus pequenos objetos de decoração e um jogo de toalhas de banho praticamente novo que vou guardar com carinho na minha casa. Minha madrasta, sua segunda esposa, perguntou se eu queria algum móvel. Ela decidiu se mudar para um apartamento pequeno e vai levar poucas coisas.

Escolhi uma mesinha de canto que você lixou e pintou algumas vezes. Tenho um lugarzinho para ela em casa. Toda vez que eu passar e olhar para a mesinha que logo vai mudar de novo de cor vou me lembrar de você.

Vou guardar esses mimos que eram seu e estão em ótimo estado, serão como um pedacinho seu na minha casa.

Está sendo uma delícia ver as fotos, ler atrás de cada uma delas a anotação da data e às vezes, local.

Agora me lembro de você durante o dia pelo menos umas cinco ou seis vezes. Todos os dias são assim. Quando algum amigo seu me encontra na rua, vem me falar sobre você, me dar os pêsames, me emociono, nem sempre choro, fico encantada e surpresa, como você era popular. Dias desses depois de chegar do trabalho chorei de uma saudade desesperada imaginando que nunca mais poderei te dar um forte abraço daqueles bem longos, quentinhos, que eu tanto gostava e que você sempre estava disposto à dar e receber.

Estou organizando papéis, fotografando com meu celular alguns cadernos e selecionando fotografias especiais. Daqui alguns meses você faria aniversário. Nessa data combinei com meus irmãos e seus amigos que todos nós iremos para o meu sítio. Lá vou fazer o bolo decorado com frutas, com recheio de creme e massa branca , aquele que você amava.

Nesse dia especial vou projetar fotos e trechos de vídeos que você gravou dos filhos e onde também aparece seus pais e meus tios, vários deles falecidos, escolhi alguns bilhetes, seus ingressos guardados para mostrar para todos e celebrarmos a sua existência.

Contei minha ideia para os nossos familiares e seus amigos e eles acharam que a homenagem será linda, alegre, simpática, como você sempre foi.

Alguns deles disseram que trarão fotos suas antigas guardadas com eles . Será tocante ver esses registros que parecerão cenas congeladas no tempo.

Seu Maneco, agora é como uma fagulha de amor que vive dentro do meu e de muitos outros corações.

Manuh Danorte
Enviado por Manuh Danorte em 13/09/2024
Reeditado em 20/09/2024
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