Aplicativo

O passageiro seleciona na hora de pedir o carro os detalhes de como quer ser atendido. Recebo também seu nome e uma foto sua, bem pequena, e como quer ser chamado.

Ao aceitar mais uma corrida no aplicativo recebo uma lista de recomendações. Ligo o ar condicionado na temperatura solicitada, 11 graus, desligo o rádio que estava num volume baixo, e me encaminho com um Uber Black para o ponto de embarque, ao localizar o passageiro na calçada destravo a porta , faço apenas um leve sinal com a cabeça ao vê-lo, não falo boa tarde. Durante anos trabalhei dirigindo um táxi nesse trânsito maluco de São Paulo.

São muitas horas dentro de volante, o tempo passa mais rápido quando o passageiro ou passageira puxa conversa. Eu gosto de dirigir na estrada, em especial, quando vou visitar minha mãe em Encruzilhadas, cidade no sul da Bahia, divisa com Minas Gerais , sem pressa, parando para dormir e retomando a viagem pela manhã. É uma delícia estacionar buzinando e ver o sorriso da minha mãe que me espera com a comida que eu mais gosto pronta, no forno e um café fresquinho. Ela começa a contar as novidades e quer ouvir notícias de todos daqui de São Paulo. Dirigir o dia todo dentro da cidade eu faço por necessidade.

Observo que Dércio, o passageiro, usa terno azul marinho e gravata, óculos de sol que parece de grife, mexe no celular, está usando fone de ouvido, muito sério, ele aparenta ser jovem, deve ter uns trinta e poucos anos. Talvez tenhamos a mesma idade. Vou leva lo até um prédio enorme de alguma empresa importante localizada no lado direito da pista na Marginal Pinheiros perto da Hebraica. A viagem vai ser um pouco demorada, está tudo travado. Para mim dirigir sem escutar música é incômodo. Música ou notícia, gosto muito de ouvir baixinho, ajuda o tempo passar mais rápido ou seria menos devagar?

O sol ardido está queimando lá fora, a Marginal lotada como de costume, tudo dentro do esperado. Mais cedo consegui parar para almoçar, um luxo, nem sempre dá tempo. Achei um restaurante simples e bom daqueles que servem um prato feito, estacionei e levei uns quarenta minutos para almoçar e depois pagar a conta. Nessa hora eu estava do outro lado da cidade. Tem dia que me esqueço de pegar umas frutas para deixar no carro e nesse dia quando não tenho nem uma maça para comer e não tenho tempo de parar para, porque as chamadas emendam uma na outra, resultado: meu estômago dói. Minha desorganização ainda vai me ferrar, eu sei que preciso tomar cuidado para não ter uma gastrite.

No fim do dia de hoje, depois da última corrida que costuma ser lá para às 21 horas eu vou fazer a transferência de dinheiro para pagar o aluguel do carro. Foi um achado alugar um carro automático diretamente com um conhecido. Pagar a taxa da locadora de carros seria ruim, eu ganharia menos. Gasto com a gasolina, o aluguel semanal e a taxa do seguro. Um alívio. Depois de tantos anos dirigindo eu não saberia mais trabalhar em uma empresa, ser CLT, ter carteira assinada, me sentiria enjaulado se tivesse horário cravado para entrar e sair de um escritório.

Sou um motorista atento, cuidadoso, o trânsito não em afeta. Sei que nos dias de chuvas e de evento na cidade o engarrafamento será pior que o normal, saio de casa cada dia em um horário, de acordo com a previsão do tempo, sei que vou trabalhar até quando tiver passageiro chamando no aplicativo. Durmo até mais tarde pela manhã, saio de casa um pouco depois do que é meu costume, e daí dou conta de dirigir até o fim da noite. Foi assim no último show internacional que aconteceu no Alianz Park. Nesses dias o $aldo do fim do dia é melhor, apesar de cansado, fico contente.

Eu observo que Dércio que tecla muito rápido no celular que parece quase grudado ao seu corpo, indiferente ao trânsito, ao barulho externo, como se estivesse dentro de uma bolha motorizada e silenciosa, longe de todos. A tela tem o poder de dominar a atenção de uma pessoa e nessa hora o espaço virtual e o real parecem se confundir É impressionante como as vidas estão cada vez mais controladas por pequeninhos telefones, cheio de recursos, aparelhos cada vez mais caros, mais inteligentes criando usuários que parecem zumbis. Eu fico impressionado quando a corrida termina, eu estaciono o carro e tem passageiro que leva um pequeno susto, reage como se acordasse de um período de transe.

Eu também uso celular e vários aplicativos, trabalho por horas conectado a um deles, mas limito meu tempo de tela nas minhas horas de descanso e não leio qualquer coisa, busco ser crítico. Quando não estou dirigindo desligo meu celular em vários momentos. Gosto de conversar pessoalmente, de ler, de preparar comida, e comer bem, amo dormir. Viajar e visitar meus familiares é o que eu mais gosto.

Estamos quase chegando no ponto onde o passageiro vai desembarcar. Já aceito outra corrida, pelo aplicativo, ali perto. Dércio desce sem dizer nenhuma palavra. Não descubro como é o tom da sua voz. Sigo para o endereço indicado pelo aplicativo para atender meu próximo cliente.

Manuh Escrita
Enviado por Manuh Escrita em 13/09/2024
Reeditado em 14/11/2024
Código do texto: T8150610
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