Haidar, Carina
Estou indo ao escritório de meu pai a pedido dele, ou melhor, convocação dele. Quando me aproximo ouço vozes exaltadas. Uma mulher fala alto:
_Você fará o que tem que ser feito. É uma obrigação dele.
Outra voz, e essa eu conheço, só não lembro quem é, responde irada.
_Nem um milhão de anos você terá o que quer mãe. Se soubesse que era isso que queria não teria saído pra viajar com você. Disse-me que queria meu perdão.
_Se eu dissesse não conseguiria trazê-la. E como eu disse é uma obrigação dele.
_Obrigação? Por quê? Vocês não entendem o que é ser seduzida, pensar que é amada, querida, cuidada e descobrir que o canalha só queria te levar pra cama e tirar sua virgindade. Depois bem feliz e radiante dizer: “Consegui o que queria. Saia da minha cama sua vagabunda. Sabia que era uma mulher fácil. Nunca mais quero te ver.” Olhem pra vocês, felizes e realizados em seus cargos e postos de comando. Se acham cheios de razão. Usam os termos: Sou pai ou sou mãe. E querem me fazer sofrer mais. Nunca mais quero ver aquele homem. Fui humilhada, destratada, destruída por ele. E desde então não tem um único dia que não me lembre dele. Não farei o que querem. Sou emancipada, vivo as minhas custas, não dou despesa pra ninguém. E não abro mão disso por nada nesse mundo, muito menos por ele. Pense o senhor, apenas pense, pois sei que isso não acontecerá, suas filhas são honradas, se uma delas cai na lábia de um conquistador barato como seu filho. Então me esqueçam, nos esqueçam. Até nunca mais.
Quem será? E como tem raiva de um filho de meu pai. E que força tem essa mulher. Ouço a porta que dá para o jardim bater com força. Voluntariosa! Retrocedo em meus passos e penso se tenho algo a ver com isso. Sou o filho mais velho, mas não tomo decisões com meu pai a respeito de meus irmãos, apenas quanto ao estado. Ando devagar até a sala ao lado e vou até a porta que dá para o jardim. Procuro pelo jardim e tento ver se ela está nele. Busco e não acho. Até que uns barulhos de ramos sendo mexidos perto da fonte me chamam a atenção. Ela andou rápido.
Vejo a figura de uma mulher andando, agora anda devagar. Bem vestida com roupas ocidentais, mas com respeito aos nossos costumes. Uma bela figura feminina. O que me chamou atenção nela foi o cabelo. Tão comprido, chega ao quadril. Negro e brilhante, belíssimo. Fico estático olhando. Quando percebo estou andando pelo mesmo caminho e sem fazer barulho. Tenho a impressão de já ter visto esse cabelo. Ela fala com alguém, mas não tem ninguém aqui. Deve ser telefone. Parece brava e ao mesmo tempo doce e amável.
_Nunca que vão me fazer aceitar essa imposição. Você não merece passar por isso.
Ela respira fundo. Abaixa um pouco a cabeça para frente e os cabelos caem pelos lados do corpo. Fico maravilhado com a visão. Ela volta a falar.
_Vamos embora ainda hoje. Já arrumei tudo. Aliás, nem desfiz as malas. Tinha um pressentimento ruim quando vi que mamãe me trouxe pra cá onde meu inferno pessoal começou. Você não tem culpa. Você, meu amor, é a luz da minha vida. Deus me deu um maravilhoso presente quando me deu você. Hugo meu amado, meu bem mais precioso, vou cuidar de nós sempre. Seremos sempre nós dois. Vamos entrar, está ficando quente pra você. Esqueci do sol mais eminente aqui perto da linha do Equador.
Abaixa a cabeça de novo e ri. Balança a cabeça. Parece brincar. Eu fico envolvido em olhar seus cabelos. Uma sensação de já conhecer esses cabelos. Então meu mundo gira e me sinto sem chão quando ela vira sobre seus passos e começa a caminhar em sentido a saída do jardim. Caminha leve e devagar. Mas o que me paralisou é que ela tem em seus braços um bebê. Elevo os olhos e a reconheço, Carina. A jovem que eu desvirtuei e mandei embora. Consegui o que queria e era só o que queria. Ela não me vê. Estou escondido nas plantas. Faz pouco mais de um ano que ela esteve aqui, é sobrinha de uma das minhas tias, uma brasileira, casada com um irmão do meu pai. Carina veio a convite dela por saber que a sobrinha gostava e queria saber mais sobre nossa cultura. Ouço-a falar como bebê.
_Agora Hugo, vamos para casa. Minha mãe vai sair de nossas vidas. Não sou mercadoria pra ela me vender. Não preciso dela pra viver. Tenho meu trabalho e nos mantenho bem, não é meu amor? Te amo tanto meu filho. Nunca vou esquecer como foi concebido e a humilhação que passei, mas você vale tudo para mim.
Ela está quase saindo da proteção das plantas. Preciso falar com ela. Apareço na sua frente. Falo sorrindo.
_Bom dia!! Carina, como está?
Ela agarra o bebê, o envolve forte, com força, nos braços. Olha-me com ódio e rancor. Se olhar matasse eu cairia morto agora.
_Bom dia pra quem? Não fale comigo, idiota. Nunca mais me dirija a palavra. Adeus.
Passou correndo por mim e entrou no palácio. Fiquei sem ação. Ela no ano passado me amava. Agora me odeia. E tem um filho. Arranjou um filho e se acha a boazinha.
Coço o queixo, gosto de pensar coçando o queixo.
_Porque ela está aqui? E porque conversava com meu pai e a mãe dela junto? Eu a ouvi dizer para a mãe que não gostou de ser trazida aqui contra a vontade dela. Ela gostou do meu país, ficou dois meses de férias aqui. Meu tio e a esposa passearam com ela e mostraram as belezas daqui para ela, que encantam tantos turistas. Sei que ela viu também o trabalho de caridade que minha tia faz e ajudou muito. Isso a fez feliz, ela me falou aqui nesse jardim sob a luz do luar e em meus braços.
Ouço passos e vozes vindo em minha direção. Olho e vejo meus pais acompanhados de uma mulher que lembra Carina. Meu pai me pergunta:
_Haidar, você viu Carina?
Faço que não entendi com a cabeça.
_Carina? Quem é Carina?
_Como quem é Carina? A sobrinha de Malik. Ela esteve aqui no ano passado. Vocês conversaram muito.
Finjo pensar. Aliás, penso mesmo, como sairei dessa. Minha mente está agindo contra mim e falando coisas que não quero ouvir.
_Sim, me lembro dela. Ela está aqui de novo?
Meu pai se exaspera e fala bravo.
_Você a viu? Ela estava conosco no escritório e saiu brava na direção do jardim. Precisamos encontrá-la. E porque não foi ao escritório quando o chamei?
Estou totalmente encrencado. Não sei por que, mas sinto isso bem forte.
_Vi uma mulher indo rápido na direção dos fundos do jardim. Parecia ter pressa. Muita pressa. Estava indo agora para o escritório, não sabia que tinha pressa, meu pai.
_Esqueça o escritório. Não saia do palácio até encontrarmos Carina. A conversa que quero ter com você vai acontecer ainda hoje.
Saem todos na direção que indiquei. Estão exasperados e nervosos. O que Carina fez? Passaram uns 20 minutos desde que vi Carina no jardim. Entro no palácio e chamo meu secretário.
_Ivan, você viu uma jovem com um bebê? Meus pais disseram que ela estava aqui.
Ivan sorri e diz.
_Sim, eu vi. Ela esteve aqui no ano passado. Está tão linda quanto antes e é mãe agora. De um lindo menino. Nem sabia que havia se casado. Porque pergunta?
_Meu pai me perguntou. Eu a vi indo rápido para o final do jardim. Não sabia que era ela. Ela não entrou? Que você visse, claro.
_Não vi. Estava ocupado com sua agenda. A atualizava enquanto você falava com seu pai.
Agradeço e o dispenso. Isso me aborreceu. Então meu irmão Leonardo vem descendo as escadas e me olha com espanto. E faz graça comigo.
_Irmão, o que houve? Está com cara de problemas? Alguma das suas mulheres lhe causou problema?
_Não estou com vontade de brincar, irmão. Você viu Carina? Ela está aqui e não sei por quê?
_Não a vi. Está aqui? Preciso vê-la, é uma jovem muito educada e gentil. Pena que caiu nos seus encantos e você a humilhou tanto. Eu cuidei dela quando você a mandou embora do seu quarto. Eu ouvi o que falou irmão. Ela era uma jovem muito frágil e você foi um canalha com ela. Espero que ela não te veja de novo.
Olho meu irmão como se não o conhecesse. Ele me chamou de canalha. É a segunda pessoa a me chamar assim hoje. Ele vai saindo depois de falar e tem uma mala na mão.
_Aonde vai? Viajar? Algum caso de namorada?
Ele bem sério e formal me responde.
_Não sou você. Não ajo como você. Vou fazer uma pequena viagem. Salvar uma amiga. Querem casá-la contra a vontade dela. Vou ajudá-la conversando com os pais dela. Mas não me comprometendo. Até mais ver.
Sai rápido como se tivesse muita urgência.
Passam a manhã toda procurando Carina. No almoço não falamos nada, hora sagrada. Após o almoço meu pai me convoca ao escritório dele. Não sei o que fiz e em qual encrenca me meti, mas dessa vez parece sério e formal demais.
_Chamou meu pai?
Ele bem sério falou:
_Um dos seus momentos de galanteador está me causando dor de cabeça. Quando você verá que é o primogênito e o responsável pela família toda? Como posso deixar a família a seu cargo se não cuida de si mesmo? Não sei onde e nem como não o instrui e eduquei para ser meu sucessor. Quando será responsável? Já tem 25 anos, não é mais um adolescente. Deve ser um adulto. Como poderei passar meu cargo para você se não cresce? Se não fosse obrigação eu passaria o cargo para Leonardo. Ele é responsável e trabalhador. Honrado e competente. E você o que é? Fora ser mulherengo e estragar a vida de jovens? Diga-me, Haidar? FALE!
Eu senti meus pés afundarem em areia movediça. Sou isso mesmo que meu pai falou. E não é a primeira vez que ele fala isso. Hoje ele está com muita raiva de mim. Até pensa em tirar meu direito de primogenitura. O que será que fiz?
_Falar o que, meu pai? Não sei o que fiz para me desculpar. E sei que sou assim. Prometo mudar.
_Promete mudar! Promete, promete, mas não muda nunca. Não sabe o que fez? Nunca sabe. Seu dissimulado, mentiroso, desgraçado. Sabe o que é honra? Eu sei que te ensinei. Você aprendeu? Diga alguma coisa.
_Meu pai, não sei a que se refere que eu fiz. Aprendi o que me ensinou sobre honra. Com total certeza mudarei. Sou o primogênito e tenho que arcar com seus deveres.
_Sabe o que é dever? Aprendeu sobre honra quando? Ao levar para o seu quarto a sobrinha do meu irmão, que nos visitava, e fazê-la sua prostituta? Ela é da família, Haidar. FAMÍLIA! Sabe o que é isso? Espero que ela seja encontrada ou eu mesmo o matarei, Haidar. Sem dó nem piedade. Saia da minha presença e não apareça nas refeições de família. Não quero vê-lo enquanto me alimento. Sua mãe também não quer. SAIA!
Saio do escritório até zonzo com as palavras de meu pai. Ele está me retirando do convívio com a família. Minha família. Porque eu estive com a sobrinha de meu tio. Tá certo foi bem errado. Mas ela é linda. E foi tão fácil enganá-la. Era bobinha e ingênua. Presa fácil. No entanto só agora me apercebi de que era família. Com família não se mexe.
Droga! Mil vezes droga. Como sairei dessa? E onde será que ela está? Esse palácio é enorme. Levei-a aos meus esconderijos, acho que vou procurá-la neles. Depois de andar por todos eles não a encontrei. E como ela pode sumir com um bebê. Bebês fazem barulho, choram, tem que se alimentar. Resolvo ver com a governanta em que quarto ela está.
_Senhor, a senhorita Carina estava na ala leste. Ela saiu pela manhã de lá. Precisa de algo mais?
Agradeço e a dispenso. Como estava? Saiu pela manhã? A vi de manhã. Lembro do que a ouvi falar como o bebê. E me dizer depois adeus. Meu pai irado quer me matar.
Três dias se passaram e ninguém tem notícias dela. Ela não atende ao celular, seja quem liga só dá caixa postal. A mãe pediu a uma irmã dela para ir a casa dela e a informação é de que não está lá. O porteiro do prédio disse que ela se mudou há dois dias. Estou de novo no escritório de meu pai. A fúria em pessoa é meu pai. Até seu olhar me destrói o coração. Eu amo meus pais. Acho que esse sentimento é a melhor coisa que eu tenho. Meu pai está me olhando tão ferozmente que sinto o inferno me tragar.
_Viu o que fez? Onde ela está? O que fez com ela?
_Como o que fiz? Com quem?
Meu pai levanta e bate tão forte a mão na mesa que o abajur cai e quebra no chão. Ele está vermelho e tem os olhos em brasa. Minha mãe e a mãe de Carina estão aqui, meus tios, tios dela, também estão.
_Com Carina, seu idiota desgraçado. Como pode sumir com ela e o bebê?
Meu tio se levanta devagar e me olha sério. Analisa meu semblante e fala com meu pai.
_Irmão, ele não sabe. Está horrorizado com suas palavras. Mas não sabe do que falamos. Ele viu Carina no jardim, falou com ela, eu vi. Ela foi firme e furiosa com ele. Mas ele não fez nada com ela porque é um idiota, como você disse, irmão. Acho que devemos encerrar esse caso, por enquanto. Quando minha sobrinha quiser ela se mostrará. No entanto vai demorar, ela é independente e se cuida sozinha desde que minha cunhada a expulsou de casa, por voltar grávida do nosso país. Confio nela. Em Haidar não confio. Nem o quero perto dela. Quanto a você cunhada foi horrível esse golpe que deu em Carina. E por dinheiro. Cria vergonha! Vender a filha por um dote. Você ficará uma temporada aqui no nosso país. Longa temporada. Confisquei seu passaporte e bens. Ficará na torre B do meu palácio. Sem acesso ao mundo exterior pelo tempo que eu quiser. Amo Carina como uma filha, e ninguém fará mal a ela. Nem ao Hugo. Fui claro?
Não sei se entendi tudo. Não sou burro. Mas queriam me casar com Carina. Isso é claro. Como ela voltou grávida para o país dela? Isso é que não entra na minha cabeça. Só transei uma vez com ela.
À tarde estou no jardim da minha ala no palácio e Leonardo chega. Ele está sério e com raiva. Mais um.
_Boa tarde, irmão. Vim te ver porque cheguei na hora do almoço e não te vi a mesa com a família. Então nossa irmã Neila me contou que nosso pai o proibiu de sentar conosco nas refeições. O que houve?
_Oi, irmão. Não sei direito o que houve. Tem a ver com Carina. Nosso tio prendeu a mãe dela, porque ela queria vender a Carina por um dote. Mas ela tem um filho. O que o pai do filho dela iria dizer? Ou ele a deixou?
Leonardo sorriu e me olhou bem firme. O olhar parecendo o do meu pai, com ira nele.
_O pai sabe que ela é mãe. E ela não quer que o pai saiba que é o pai. Você é idiota, meu irmão. Um grande idiota. A divindade te proteja.
Vira-se e vai saindo. Eu seguro o braço dele e o faço se virar para mim.
_Sei que sou idiota. Todos me dizem isso há três dias. Você conversou com Carina quando ela esteve aqui? Ela falou de mim?
_Conversei. Muito. Acalmei-a pela situação que a mãe dela criou. Ela amamenta o Hugo, não pode sofrer estresse. É uma boa mãe. E ele é lindo. Tão sensível como a mãe. Ainda bem que não puxou nada do pai. Por quê? Quer saber se ela falou de você? Porque ela falaria de você? Deixa de ser tão convencido de que é o máximo, o maioral com as mulheres. Carina não é como suas conquistas irmão, ela é sensível e doce. Pena que caiu na sua conversa. Ela agora está diferente e te odeia. Deixe-a em paz.
Ele se solta da minha mão e vai embora. Eu sou um idiota, está confirmado. Até Leonardo que me tem em grande consideração e sempre diz o quanto me ama me chamou assim. Porque tudo descarrilou quando a mãe de Carina a trouxe aqui, ela não sabia que vinham aqui. Ouvi quando falou isso no escritório e tinha raiva na voz. Ainda vou entender tudo e saber de Carina, não adianta tio Malik me dizer que não devo. Ela não quer saber de mim, mas preciso entender o que houve.
Nove meses se passaram e ninguém sabe nada de Carina. Ela sumiu. Sumiu mesmo. Como ela conseguiu eu não sei e ninguém sabe. Estou ainda separado da família, como se fosse um exílio, imposto pelo meu pai. Fiz muitas pesquisas sobre Carina e acho que descobri o motivo da ira dela comigo. Suspeito que sou o pai de Hugo. Leonardo viaja a cada mês, para onde não diz, volta feliz. Esse mês ele levou Neila e Jamila, nossas irmãs. Voltaram muito felizes. Fui falar com ele, me recebeu sério como faz há meses.
_Entre Haidar. O que o trás até meu escritório? Algum problema relacionado a plantações? Não é sua área de atuação. Minha empresa de agricultura vai bem. Minhas fazendas estão com boa produção. Ser ministro é temporário, ser empresário é para vida toda.
_Oi Leonardo. Engraçadinho. Deixo a agricultura para você e o ministério também. Estou atolado de trabalho com assuntos da empresa da família. Papai tá pegando pesado comigo há meses. Diz que tenho que ser o primogênito não só no nascimento, mas nas funções que acompanham o nascimento. Porque você não nasceu primeiro? Seria mais fácil.
_Fui esperto. E você furou a fila. Mas, diga irmão o que o traz aqui? Seu semblante está sério.
_Há nove meses procuro por Carina. Ninguém sabe dela. Nada a encontra. Parece que foi tragada pelo espaço. Eu suspeito que eu sou o pai do filho dela.
Leonardo me olhou firme. Até com raiva eu achei.
_Porque suspeita isso? Tem algum indício?
_A mãe dela queria que ela se casasse comigo. Bom eu acho que era isso. Nunca se falou direto, mas só eu tomei bronca na situação. E a mãe dela expulsou-a de casa quando ela voltou do nosso país, porque ela estava grávida. Quando eu transei com ela, ela era virgem. Isso me tem tirado a energia. A incerteza, não a encontrar, não saber. Você sabe alguma coisa Leonardo?
_Sei. Tudo. Mas não tenho o direito de falar. A vida é dela. E você foi um canalha com ela. Sabia que ela era virgem, devia ter sido responsável e deixado ela de lado. Foi total irresponsabilidade sua. E chamá-la de vagabunda Haidar, foi muita humilhação. Ela te amava. Não era uma das mulheres da vida que você usa. E não diga que você era jovem. Tinha idade bastante, orientação e deveres, para saber que era errado. Se esse era seu assunto comigo, pode ir embora.
Olho meu irmão e fico sem entender. Puxa vida ninguém quer falar comigo sobre Carina. Só brigam.
_Uau, irmão, todas as armas voltadas para mim.
Ele me interrompe.
_Não usei todas as minhas armas. Se usasse você estaria morto.
_Você a ama? Carina, você a ama?
_Como irmã. Como uma pessoa que foi desonrada e usada pelas pessoas que amava. Como a pessoa que precisa de um irmão. Assim eu a amo. Mas amor é um sentimento desconhecido por você, Haidar.
Respirou fundo e mudou de assunto.
_Devia estar pensando no jantar de hoje, quando papai vai apresentar sua noiva. E lembre-se, sua noiva é virgem. Depois da noite de núpcias não a chame de vagabunda. Ela se guardou para o marido. Como Carina se guardou para o amor dela, no caso você. Vai embora. Tenho que trabalhar.
_Eu sou mais velho que você. Você me deve respeito.
Ele se ergueu da cadeira e apoiando as mãos na mesa falou bravo e sério.
_É o mais velho de nascimento. De responsabilidade, discernimento ou amor não é. Tudo isso sou mais que você. Vá ser o primogênito. E acredite, sou extremamente feliz em ser o segundo filho. Sou eu mesmo. Sem as vantagens que te desnortearam do caminho correto.
Saio da sala dele porque ele tem razão em tudo. Que droga de homem eu sou? Que droga de chefe de família eu serei?
É a noite de apresentação da minha noiva. Por dever tenho que me casar, cumprir o acordo feito quando eu era criança. Estou quase pronto. Olho-me no espelho e vejo o olhar triste de um homem incompleto. Segundo meu pai e meu tio, minha esposa me completará. Nem sei quem ela é. Nunca a vi. Isso é horrível. Estamos no século 21 e parece que estamos no tempo que ainda se andava de carroça. O que será desse casamento? Serei o marido que esperam? Serei o que esperam do primogênito? De mim mesmo, sei que esperam pouco.
Saio do quarto, desço a escadaria e vou em direção ao salão da família. De lá seguiremos para o salão de jantar. Quando chego vejo minhas irmãs animadas vendo algo no celular. Estão tão ligadas no celular que não veem quando chego perto. Então eu engulo grosso e meus olhos se abrem muito. Elas estão vendo um vídeo de um menino lindo andando bambo, mas feliz, no fundo se ouve a voz da mãe feliz o encorajando. É Carina. O bebê é Hugo. Ele é minha cópia.
Estou parado vendo e elas recomeçam o vídeo. Então ouço no vídeo. “Vem Hugo anda até a mamãe para as tias verem. Vem querido. Amor da mamãe. Muito bem!” ela bate palmas para ele e ele repete o gesto todo feliz. Ela fala de novo. “Viram tias, ele já anda tão lindo. Mostrem pro tio Leonardo. Agora preciso ir. Beijos queridas.” Minhas irmãs desligam o celular. Neila fala.
_Vou encaminhar para o Leonardo. Ele está tão lindo. Saudades de colocá-lo no colo. Pronto, enviei. Vou esconder na nuvem pra ninguém achar.
Meus pais entram no salão nesse momento. Estou ainda estático e parado no mesmo lugar. Os dois me olham sem entender. Minhas irmãs olham na direção do olhar de nossos pais e me veem. Dão um gritinho de susto e surpresa. Olham pra mim e pro celular. Eu falo.
_Eu vi e ouvi.
Meu pai pergunta.
_O que você viu e ouviu? E porque essa cara de catástrofe?
_Eu vi Hugo andando. Vocês todos sabem da verdade. Porque me esconderam?
Nesse momento Leonardo entra no salão. Lindo e risonho, deve ter visto o vídeo. Ele ouviu minha pergunta. Olha-me e me responde.
_Sim, todos sabemos. Escondemos porque você não merece saber. Por isso a protegemos sempre, e continuará assim.
Minhas irmãs se levantam e correm para ficar perto de Leonardo. Ele abraça as duas.
_Meninas, pedi cuidado. Agora teremos que trocar o celular dela. Fora outras coisas. Sem problemas queridas. Cuidaremos sempre deles.
Beija as cabeças delas.
Meu pai me olha como se fosse me matar, como há meses atrás.
_Se você mexer um dedo mais na tentativa de encontrá-la, ficarei sem primogênito. Eu mesmo darei fim a você. Agora desmanche essa cara de desgosto e seja o primogênito. Temos um jantar com a família de sua noiva.
Um jantar todo diplomático. Terrível conversar com pessoas que nunca vi e uma delas será minha esposa. Ela não é feia, mas falta algo nela. Acho que o mesmo que falta em mim, entusiasmo com o casamento. Após o jantar que, graças à divindade, é só para apresentar os noivos, despeço-me de meus pais e irmãos. Leonardo me para antes de ir para minha ala.
_Quer saber alguma coisa de Carina e de Hugo?
_O que mudou para querer me contar?
_Seu olhar perdido e desatenção nas conversas durante o jantar. Quer ou não quer?
_Quero.
_Vamos ao jardim.
Caminhamos e chegamos ao banco junta a fonte. Leonardo sentou. Eu também.
_Há nove meses, quando entrei em casa, você estava indo para o escritório de nosso pai. Fui pelo outro lado, minha intuição de militar me fez ir. Ouvi a conversa de Carina com nossos pais e a mãe dela. Ouvi com os ouvidos e o coração o desabafo dela. Senti o quanto ela sofreu sozinha e não contou para ninguém. Quando ela saiu para o jardim fui atrás e, em breves minutos, te vi seguindo-a. Ela falando com alguém que parecia ser muito querido. Caminhei rápido para ficar a frente dela e então vi com quem ela falava, um bebê que estava em seus braços. Havia tanto carinho dela pra ele, proteção, cuidado. Lembro de umas palavras que ela disse ao bebê. “Você, meu amor, é a luz da minha vida. Deus me deu um maravilhoso presente quando me deu você. Hugo meu amado, meu bem mais precioso, vou cuidar de nós sempre. Seremos sempre nós dois”. Ela falou mais coisas e sei que você ouviu, pois estava um pouco atrás dela. Quando ela virou e te viu percebi o quanto ela estava com raiva de você. Com ódio. Agarrou Hugo e o apertou contra o peito. E te mandou, à maneira dela, pro inferno. Andei rápido e a interceptei, quando estava para subir as escadas. Disse que vi e ouvi tudo e a protegeria. Em segundos meus seguranças trouxeram a bagagem dela e de Hugo e a tiraram do palácio pela saída dos fundos. Arrumei uma mala pequena. Sempre viajo e não seria de estranhar.
Leonardo respira e volta a falar. Eu estou, ao que parece, sem voz.
_Ela estava sem emitir um som no carro. Preocupei muito. Ela agarrava Hugo como se ele fosse sair dos braços dela. Quando entramos no meu avião e decolamos, ela relaxou o corpo e respirou fundo. Começou a tremer e chorar. Não sabia o que fazer. Então fiz o que faço com nossas irmãs. Abracei-a e trouxe para o meu ombro, acalentei e deixei chorar até diminuir. Cuidei para que Hugo não caísse. Ele, apesar do desespero de Carina, dormia profundamente. Pedi para pegá-lo no colo e ela ir ao banheiro lavar o rosto e respirar um pouco. Ela relutou tanto. Então andei com ela até o banheiro e a fiz entrar, eu fiquei na porta e levei meus braços para pegar Hugo. Só então ela o entregou em meus braços. Não imagina a sensação maravilhosa que senti ao tê-lo em meus braços. Fez-me querer ser pai. Enquanto o segurava ele acordou. E me olhou com lindos, curiosos e brilhantes olhos azuis, como os de Carina. Trouxe aquela mão gordinha e agarrou minha barba, fez uns sons e parecia rir. Roubou meu coração naquele momento.
Leonardo pausou a narrativa, parecia lembrar-se de algo. Seus olhos estavam brilhantes e alegres. Voltou a falar.
_Em um dia a transferi do lugar que morava para um seguro, no qual eu poderia estar sempre em contato. Lógico ela teve que deixar o emprego ou seria descoberta. Ela trabalha para mim. Home office. Não quis ajuda financeira. Ela é uma pessoa incrível. Tem uma personalidade forte, é determinada e bem capacitada. É triste, traumatizada com tudo o que aconteceu. Você e a mãe dela são piores que Satã no conceito dela.
Leonardo levanta vai até a fonte, mexe na água, respira fundo. Parece viajar nos pensamentos. Fica um longo tempo sem falar, dando a impressão que já falou tudo.
_Há dez dias Hugo fez um ano e ela fez 18 anos. Sabia que ela menor de idade quando se relacionou com ela? Sabe que destruiu os sonhos dela? Sabe que a fez se tornar adulta da noite para o dia?
Eu não emito um som, continuo sem voz.
_Haidar, meu irmão, você não faz ideia de quanto destruiu aquela jovem feliz que veio conhecer nosso país, nossa cultura. Conversamos muito, ela consegue se abrir comigo. Espero que a divindade te perdoe, porque, sinceramente, eu não te perdoo. Carina não te perdoa.
Leonardo mexe na água de novo. Lembro de quando éramos crianças, ele assim disfarçava e jogava água em mim. Mas ele só mexe na água.
_Hugo está bem, se desenvolve bem. Já fala mamã, ete que é leite, ou seja, quer mamar. Carina ainda o amamenta. Ela é boa mãe. Eu conquistei o coraçãozinho dele e o amo intensamente.
Anda de um lado para o outro. Para, me olha, anda de novo.
_Espero que a divindade abençoe seu casamento, que você possa ser pai, ver seu filho crescer na barriga de sua esposa, vê-lo nascer e viver cada momento dele com amor e carinho. Amor que todos os dias eu peço à divindade que coloque em seu coração, irmão. Do mais profundo dos meus sentimentos espero que seu casamento seja feliz. Deixe Carina e Hugo em paz. Ele nunca vai saber que você ajudou a concebê-lo. Sem intenção, mas o fez. Sua intenção era o prazer de desvirginar uma jovem, sem se importar se a traumatizaria com sua repulsa no final. Carina merece ser feliz, quem sabe arranjar alguém que a ame como ela merece. Quanto a Hugo, eu me responsabilizei por sua educação e manutenção, nada, absolutamente nada, faltará a ele. Esqueça Carina! Para você ela foi objeto de prazer, só isso. Seja o primogênito, viva a vida que nosso pai deseja para você. Lembre de seus deveres e obrigações. As benesses e facilidades do primogênito você extrapolou todas.
Anda até ficar na minha frente e sério, com olhar de raiva e muita firmeza fala.
_Entendeu tudo o que falei? Não quero ter que agir contra você. Você é o primogênito de nosso pai. Eu sou o ministro da segurança do nosso país. E você irmão, não é o rei. É só sobrinho neto dele, como eu.
Olho muito para Leonardo. Levanto e de frente pra ele encontro a minha voz.
_Entendi tudo, irmão. Não gostei, mas entendi. Não vou atrapalhar Carina e você. Você a ama.
Ele me olha e ri.
_Amo, como irmã. Prometi protegê-la sempre e assim o farei. Protegerei Carina e Hugo até com minha vida. Eles não merecem sofrer mais. Bom, ela não merece. Hugo ainda não sofreu, só não tem pai. Sou a figura mais próxima de pai que ele tem. Serei eternamente. Eu o amo! Ele me ama. Isso basta.
Ainda nos olhamos intensamente. Leonardo sempre vence no olhar. Ele é militar e tem vontade férrea. Entramos sem nos falar. No corredor damos boa noite.
Após o banho e minhas orações eu vou para a varanda. Olho as estrelas e agradeço à divindade a bondade de me permitir conceber um filho. Peço perdão por tudo o que fiz a mãe dele. Peço perdão por não viver com meu filho. Peço que o cuide a vida toda. Um dia o conhecerei, mas ele não saberá que é meu filho.
E só me atentei a uma coisa agora, Carina, Hugo e eu fazemos aniversário no mesmo dia. Esse ano meus pais e irmãos tinham compromisso e não estiveram comigo. Eles estavam com Carina e Hugo, um aninho dele.
Será que um dia me perdoarei? Espero que não, assim me penitenciarei a vida toda.
Sibeli Figueiredo
20/06/2022