Outra face
Minha pequena primeira crônica:
Outra “Face”
Eu estava ali, naquela sala sufocante, a tensão rodopiando entre nós como um espectro invisível, quando o possível editor decidiu, depois de longos rodeios, revelar o veredito: ele não poderia editar minha obra. A princípio, a cordialidade que envolvia a conversa parecia meramente protocolar, e meu instinto já captava que o diálogo estava prestes a descarrilar. Mesmo assim, a curiosidade natural que habita em qualquer escritor — aquela velha amiga que nos faz questionar tudo — tomou o comando. “Por quê?” — perguntei, sem rodeios, com a calma de quem já prevê um golpe, mas ainda assim precisa senti-lo.
O possível editor, com seu terno alinhado e postura de quem carrega o peso do mundo nas costas, começou a elogiar as margens do texto. Sim, as margens! Como se isso fosse o centro da questão. Eu sabia que ele estava adiando o inevitável, então deixei-o se afundar um pouco mais nas suas próprias justificativas vazias. Depois de um elogio aqui, outro acolá, veio o cerne da questão, o nervo exposto. Havia dois parágrafos — apenas dois — que, segundo ele, eram problemáticos. Fugiam de sua “tendenciosa aspiração a-religiosa”.
Minha resposta não foi imediata. Eu gostava de saborear esses momentos, observar as rachaduras no verniz da diplomacia que ele usava como escudo. "Então, um antagonismo que cabe em dez linhas pode desmoronar sua ideologia?" — deixei a pergunta ecoar, não tanto pelo impacto da resposta, mas pelo desconforto que ela certamente traria. E trouxe. Ele voltou a falar das margens, claro, como quem desvia de um tema espinhoso, fingindo que o problema real era algo tangível, técnico.
Mas eu já havia descido fundo demais naquele poço para deixar que ele escapasse assim. Seu retrocesso em tentar esconder a discordância ideológica ficou evidente, cristalino. Era claro como o suor que agora escorria pela sua testa. Não era sobre o texto. Era sobre o que o texto o fazia sentir, o desconforto de lidar com algo que minava suas certezas cuidadosamente construídas.
Meus dedos, enquanto isso, já haviam escorregado casualmente para o bolso da minha calça, tateando as moedas. O peso frio do metal parecia me conectar com algo maior. Tirei uma delas, uma simples moeda de 5 centavos, oxidada pelo tempo. Ela, com seus 4,10 gramas, tornou-se o centro da minha atenção, enquanto o editor me encarava, sem entender nada. Mas isso estava prestes a mudar.
"Veja", estendi a mão, mostrando a moeda. O possível editor, com um desconforto visível, passou a balançar as pernas como quem tenta dissipar uma energia incômoda. "E se fosse Plínio Salgado?" — lancei a pergunta, carregada de ironia, no ar. Ele piscou algumas vezes, confuso, claramente buscando uma resposta que não tinha. "Você gosta de numismática?", ele arriscou, na esperança de redirecionar a conversa para um terreno mais seguro.
"Gosto de desconcertos", repliquei, e foi aí que senti o poder das palavras abraçar o momento. A moeda, com sua face insignificante, tornava-se uma metáfora viva, pulsante. "Escolheram um emblemático", continuei. "Um rosto que estampa a moeda, mas não pelo mérito de quem foi, e sim pela necessidade de preencher um vazio simbólico. Um alferes qualquer." Eu o via digerir aquilo com dificuldade. E enquanto ele tentava lidar com a metáfora que eu jogava em sua direção, minha mente já traçava uma ponte entre a moeda em minha mão e os personagens históricos que, como ele, se escoravam em uma ideologia para se proteger.
Getúlio Vargas. Carlos Lacerda. Ah, sim! O editor não sabia, mas ele estava prestes a tropeçar num campo minado de histórias, tal como Lacerda tropeçou no próprio discurso ao incitar o suicídio de Vargas. “Diga-me”, continuei, agora com um leve tom de provocação, “e se fosse Getúlio Vargas ali, naquela moeda? E se fosse Lacerda?”
Ele piscou novamente, dessa vez mais rápido. Era como se estivesse tentando escapar de um labirinto cujas paredes se estreitavam a cada passo. Ele conhecia os nomes, claro, mas sabia aonde eu queria chegar? Sabia que a moeda que girava entre meus dedos carregava o peso de narrativas históricas que, assim como ele, tentavam controlar a narrativa a seu favor? Vargas, o mestre do populismo, o criador da CLT, o homem que, ao mesmo tempo, jogava com o amor do povo e com os interesses das elites. E Lacerda, o "corvo", que com sua eloquência ferrenha, fez da política um palco de vingança e ideologia.
Lembrei-me do fatídico 24 de agosto de 1954, quando Getúlio decidiu selar o seu destino com uma bala no peito. Sua carta-testamento ressoava ainda nos ouvidos dos brasileiros: "Deixo a vida para entrar na história." E lá estava Lacerda, com seu dedo em riste, agitando o país com acusações, mas agora incapaz de fazer outra coisa senão observar o povo erguer o ex-presidente ao status de mártir.
"E é isso que fazemos, não é?", disse eu, olhando diretamente nos olhos do editor, que agora parecia um tanto mais pálido. "Nós escolhemos nossos mártires, decidimos quais narrativas prevalecem. Tal como Getúlio, que moldou sua saída dramática para que sua história vencesse a de Lacerda. E você, agora, tenta moldar a narrativa de um texto, dois parágrafos, como se isso fosse suficiente para conter a verdade."
Ele não tinha mais palavras. E eu? Eu sentia o peso da ironia escorrer pela minha mente como uma música suave. “A moeda que você ignora”, continuei, agora mais tranquilo, “não tem valor para você porque você escolheu não dar valor a ela. Mas ela existe. Assim como Vargas existe em nossa história, e assim como Lacerda também. Nós moldamos nossas narrativas, mas a verdade, meu caro, é que elas nos escapam. Porque a história, como essa moeda, está sempre em rotação.”
Levantei-me calmamente, observando o possível editor, agora mais silencioso que antes, sem a menor intenção de estender a mão para mim. Não precisei de um gesto de despedida. Sabia que aquele era o fim do nosso encontro. Assim como Vargas e Lacerda, estávamos agora separados por uma barreira ideológica que ele não conseguia transpor. Quanto à moeda de 5 centavos? Ah, essa ainda está comigo, pequena, quase insignificante. Mas com um valor simbólico que nem mesmo ele poderia negar.
Enquanto saía da sala do possível editor, os pensamentos continuavam a ecoar na minha mente, embalados pelo confronto recente. A moeda de 5 centavos permanecia em meu bolso, agora mais pesada, como se carregasse em si o peso de décadas de disputas e intrigas políticas. Não pude deixar de refletir mais profundamente sobre aquela velha guerra entre Getúlio Vargas e Carlos Lacerda, uma batalha que não terminava em 1954, mas que ainda reverberava, de certa forma, nas discussões ideológicas de hoje.
Getúlio, com sua sagacidade populista, entendia o poder da narrativa como poucos. Ele sabia que, ao final de sua vida, as palavras seriam tão mortais quanto as balas que encerraram sua existência. Lembro-me da carta-testamento: "Deixo a vida para entrar na história." Um movimento perfeito, uma jogada final que não poderia ser contestada. Lacerda, por outro lado, não tinha o mesmo instinto trágico de seu adversário. Sua arma era outra: a palavra afiada, o discurso inabalável. Ele preferia lutar no campo do enfrentamento direto, nas trincheiras da imprensa e da oposição política, do que criar martírios.
E aí estava o grande paradoxo: Vargas morria e se eternizava como herói, enquanto Lacerda sobrevivia para ser odiado, admirado, mas sempre contestado. Getúlio sabia que o público precisava de um mártir, de alguém a quem associar sua dor e esperança, enquanto Lacerda preferia o papel de algoz implacável, aceitando o fardo de ser o vilão necessário.
Eu andava pelas ruas da cidade, ainda ouvindo na minha cabeça o eco daquele embate histórico. Como aqueles dois homens, distantes no tempo, moldaram não só suas épocas, mas também o jeito como até hoje discutimos poder e moralidade? Getúlio compreendia que sua morte daria fim ao ciclo, mas garantiria a continuidade de sua memória, enraizando-o no inconsciente coletivo do Brasil. Lacerda, em contrapartida, viveria por muito mais tempo, mas à sombra daquele que derrotara com uma última jogada de mestre.
O editor não entenderia isso. Ele não enxergava que as narrativas que escolhemos contar moldam não apenas a história, mas também a percepção de quem somos. Getúlio e Lacerda travavam uma batalha não só de poder, mas de controle sobre a verdade. Quem conta a história define o legado.
Lembrei-me de uma praça onde se erguiam monumentos dedicados a líderes que, como Getúlio, haviam usado a narrativa a seu favor. Carlos Lacerda não tinha estátuas tão grandiosas. Sua luta era a de um homem que acreditava no confronto direto, na clareza absoluta. Mas ironicamente, foi essa clareza que o condenou. Ao atacar com tanta veemência, deu a Getúlio o combustível perfeito para alimentar sua saída trágica, elevando-o a um status que Lacerda jamais poderia alcançar em vida.
Agora, os debates sobre política, moralidade e ideologia ainda ecoam por aí, tal como naquela sala do editor. Um homem tentando moldar o que deveria ser lido, tentando controlar as ideias que são permitidas circular. Ele não queria apenas eliminar dois parágrafos; ele queria evitar que algo desestabilizasse suas certezas. Como Lacerda, o editor se agarrava à sua verdade, temendo qualquer fissura que permitisse questionamentos.
Mas o que ele não entendia é que as ideias, como as histórias, são incontroláveis. Elas se espalham como fogo em campo seco. O legado de Getúlio, construído em sua morte, continuava vivo, e Lacerda, mesmo em sua derrota simbólica, também havia moldado a história de forma irrevogável. Ninguém sai incólume de uma batalha por narrativas.
Continuei a andar, sentindo o peso da moeda no bolso, sabendo que, como Getúlio, a moeda resistiria. Mesmo corroída, mesmo esquecida, ainda manteria seu valor simbólico. Assim como as histórias que contamos, ela seria uma lembrança de que, no final, não são apenas os fatos que importam, mas a maneira como escolhemos contá-los.
Fernando Brasil
30/08/2018