O amor foge para Sintra
Ele teve uma ideia. Na verdade, ele sempre tinha boas ideias, mas não conseguia transformá-las em realidade. Ele começava a escrever uma história, mas antes mesmo do meio do roteiro já se cansava e a deixava de lado. Isso porque enquanto ia criando a história, novas ideias lhe assaltavam a mente, e, pronto!, era capturado por outras histórias. E isso virava um círculo vicioso, ou virtuoso? Certamente financeiramente vicioso.
No entanto, ele agora acreditava ter uma ideia, a ideia! Ele resolveu escrever uma história com personagens reais. Pessoas que ele conhecia, sem usar pseudônimos. Chamaria a todos pelo nome, revelaria acontecimentos reais, sem nada fantasiar, o cru, o nu, o real. Como se costuma dizer: dar nome aos bois. Ou como dizem os ingleses: “call a spade a spade”, ou seja, chamar João de João, chamar Maria de Maria.
– Por que será que temos tanto medo de dizer o que as coisas são?
– Deve ser algo cultural que nos oprime.
Ele se despedia de Aline e voltava para casa a fim de terminar seu trabalho. E foi com esse final de diálogo que teve a ideia, a grande ideia. Escrever uma história real sobre pessoas reais sem nada omitir, sem nada temer. “Será que alguma editora editaria essa obra”, meditava consigo mesmo. “Não importa se nenhuma delas tiver coragem, edito eu mesmo. Uma edição independente é um ato de coragem, inda mais o tipo de história que escreverei. O povo gosta disso, gosta que lhe tirem do sossego, do cotidiano, e nada melhor do que ver um louco colocando sua reputação em jogo. Todos, sem exceções, gostam do bizarro, do lunático. Parece que foi Sartre quem disse, que todos param para ver a demolição de um prédio, mas ignoram a sua construção”, pensava.
Quando começou a criar o projeto do livro, algumas coisas ele teve que levar em conta. A primeira coisa a fazer era selecionar as personagens. Daí pensou em escolher pessoas com histórias interessantes, histórias que valiam a pena ser contadas. Histórias que mexessem com a curiosidade e interesse dos leitores. Lembrou de Paula e Gustavo. Paula flagrou Gustavo a traindo com Ricardo, seu chefe. Foi um escândalo. Gustavo e Ricardo se meteram num avião e foram para Portugal e a pobre da Paula sozinha, quase se matou. Seus olhos brilharam com essa recordação, pois esta história era muito boa. O que piorava para Paula é que Ricardo era rico e tinha uma bela casa na bela e medieval Sintra.
Ele resolveu escrever contos. Cada história que ele lembrasse seria um conto. E já tinha a primeira: Paula-Gustavo-Ricardo, um triângulo amoroso bem interessante, bem atual. Com certeza chamaria a atenção de vários grupos da moda: feministas e a comunidade lgbtqia+. Ele já tinha até um título para o primeiro conto: O amor que foge para Sintra. Ele pensou em dar até uma perspectiva heroica à traição dos dois homens, como um grito contra a moralidade judaico-cristã. Conduzir o leitor por um caminho romântico e revolucionário. E assim, provocar certo desprezo por Paula, pois a mulher seria identificada por essa moralidade rígida que exige um comportamento preso a paradigmas e dogmas inquestionáveis. E concluiria com um arroubo de coragem libertadora de um casal gay que não se deixa reduzir por códigos e valores morais ultrapassados que têm como objetivo impedir os desejos mais urgentes e naturais dos homens.
Ele chegou a ponderar as consequências, mas decidiu não dar ouvidos ao medo, pois o medo é antinatural, anti-humano. No entanto, previa algumas complicações, daí teve a ideia de driblar alguns humores que poderiam lhe prejudicar, inserindo nos contos um tipo de viés, não perceptível facilmente, mas algumas nuances seriam reveladas que conduziriam o leitor a uma leitura alternativa da tragédia. O tema central permearia cada conto, por exemplo, no caso de O amor foge para Sintra, o tema central é o amor corajoso, o amor que vence preconceitos, o amor que liberta. Neste último pode-se até mesmo fazer uma ponte com o amor verdadeiro de Jesus que liberta contra uma moralidade dura e castradora na figura de uma mulher dominadora. E essa guinada para o Evangelho, ele previa o apoio da comunidade religiosa, principalmente dos cristãos lgbtqia+. Eles entenderiam que o conto era uma metáfora e não realidade. Nesse momento, ele chega a soltar um grito: “Gênio!”, e emenda para si: “Na tentativa de revelar uma história real com personagens reais, pensarão se tratar de uma metáfora!”.
Contudo, ele precisava pensar nas pessoas reais ao virem seus nomes reais e suas histórias reais. Mas ele já pensara em algo, numa estratégia brilhante. Ele conduziria a história por um caminho que revelasse o heroísmo, ou seja, a história não era trágica, mas heroica. E os heróis seriam aqueles que mais conseguissem o apoio da grande massa. E isso seria identificado ao longo de seu processo de criação. No caso de O amor foge para Sintra, os heróis já estavam bem definidos: Gustavo e Ricardo. Ele entendeu que alguns ajustes à história real seriam necessários, como a necessidade de demonizar algumas personagens para fortalecer os heróis. No caso desse primeiro conto, ele previa alguns ajustes do tipo em Paula. Paula ganharia características de uma mulher conservadora e de certa intolerância. E isso sendo trabalhado em momentos de destaque da narrativa, certamente produzirá no leitor certo ranço pela personagem. Pois a sua condição de mulher começaria perder a relevância por ser desgastada por perfis de desaprovação da moda social.
Pronto. Seu projeto estava pronto. Bastava agora começar a escrever as histórias. Pegou seu diário e começou a fazer pequenos esboços de histórias que lhe viam a mente. Para depois apurar melhor e fazer os ajustes necessários. E como todos sabem, quem tem a habilidade da escrita assim que começa a escrever, algumas vozes começam a soar em sua mente a sugerir histórias, situações, ajustes.
Em um ano estava tudo pronto. Uma editora independente abraçou o projeto concedendo até um belo adiantamento. Joaquim ganhou uma publicação bem moderna anunciando uma noite de autógrafos numa livraria alternativa de São Paulo. Todos os heróis de seus contos estavam presentes, orgulhosos por pertencerem a trabalho extremamente corajoso e necessário. Ricardo chegou a fazer um discurso contra o preconceito e contra a falsa moralidade de cristãos conservadores e intolerantes. A pastora Joana, famosa por pastorear uma comunidade progressista cristã, fez uma oração ecumênica belíssima que levou muitos cristãos às lágrimas. Joaquim estava extremamente feliz e satisfeito. Em fevereiro, ele partiria junto com Ricardo e Gustavo para a bela e medieval Sintra e lá iria ver a peça: O amor foge para Sintra, uma adaptação de seu conto para o teatro. Ao final da peça haveria uma discussão sobre a obra com o próprio Joaquim.
E foi assim que Joaquim após uma grande ideia conseguiu realizar seu sonho de se tornar escritor. Quando uma ideia domina o homem, nada pode impedi-lo, nem mesmo a realidade, pois esta não resiste aos seus ajustes.