AO VIRAR DA ESQUINA

“O Universo mantém uma contabilidade rigorosa.Sabe até ao cêntimo as dívidas que a morte cobra.Não há nenhuma revisão das últimas contas – nenhuma reconstituição, nenhuma revisão, nenhum alívio.

Há quando muito, um abençoado esquecimento para os não-eleitos, que acaba com o desejo, com o medo e com os tormentos que eles agitam”.

John Updike in The widows of Eastwick

A vetusta criatura lá estava no cimo do relevo, um triângulo de relva como que a acenar-lhe depois de o ter observado nas suas chegadas intempestivas e aflitas e nas corridas pela álea que levava da Secretaria até ao alpendre do edifício germinado em múltiplos hexágonos.

Era um homem sem idade, ainda interessante que vestia sobriamente um gilet negro e apoiava-se numa bengala.

- O que é que a minha Familiar fez desta vez?

- Desta vez defendeu-se justamente.É melhor o sô Vítor falava com a Drª Vanessa.

Ele pensou mas não disse “Eu fui economista, professor, com licenciatura e doutoramento e sou o sô Vítor e estas chanchas com algum poder são as doutoras. Que ordinarice!”

- A sua familiar foi atacada por um predador sexual entre os residentes.E defendeu-se corajosamente só que a placa dentária ficou cravada no baixo ventre do pobre meliante.

-Meu Deus mas não açaimam essas criaturas?Os outros não podem estar sujeitos a tanto!

- Admito que é complicado.Nós tentamos fazer o nosso melhor mas há situações que fatalmente nos escapam.

“Às vezes; o melhor é ficar calado perante a ignomínia” tinha-lhe dito a Miss Daisy,sua conhecida. Uma imponente e experiente sábia do saber envelhecer e uma verdadeira e triunfante mula em social skills.

O velho cavalheiro materializou-se atrás dele:

- Acalme-se.Não quer uma água?É tudo infelizmente o que lhe posso oferecer.

Vítor virou-se e fitou-o atentamente:

- Obrigado.São só momentos.Já tinha notado em si e desculpe a minha pergunta.O Senhor é residente ou visitante?Ou trabalha aqui?

-Ah eu?Estou enclausurado na estrutura há já alguns anos.Desisti do mundo, sabe?Deixou de me interessar literalmente.Porque não vamos falar um pouco, antes de ir embora?Talvez o ajudasse a relativizar.

-Aceito.Deixe-me só entregar os charutos à minha familiar.Ela fuma charutos cubanos.Fazem-lhe muito mal aos pulmões mas não há nada a fazer.Venho já ter consigo ao parque.

A Familiar estava-se nas tintas para tudo e para todos, excepto para ela própria.A sua insatisfação transvasava e debatia-se, sem se conseguir adaptar minimamente ao novo meio.

- Bem vistas as coisas, foi sempre um pouco assim.A minha Querida Mãe dizia que se ela entrava numa sala e se deparasse com vinte homens jovens havia sempre de arranjar maneira de dar sorte ao único que não prestasse.

- Acabamos todos sempre sós.Não tenha ilusões.Há celebridades como o dramaturgo Arthur Miller ou o realizador Woody Allen que coincidem na convicção que a vida não tem sentido nenhum.

-E que a morte é como uma colonoscopia.Ouvi, uma vez ele dizer na homenagem que o AFI organizou para homenagear a Diane Keaton.Faz-se um escuro e tudo vai desaparecendo.Não deixa de ser uma ideia reconfortante.

- Sim.Eu só gostaria que houvesse música a acompanhar.Um hino ou a banda sonora de um filme.Lawrence da Arábia ou os Salteadores da Arca Perdida, por exemplo.

É por isso que o segredo é aproveitar cada minuto como se do último se tratasse.Por exemplo, a esta hora, o Sol, a luz é lindissima.Aprenda a inspirar e a gozar simplesmente este momento.

- Da próxima vez, posso trazer um frasco de whisky á sorrelfa para curtirmos uma bebida ao cair da tarde?

- Nõo é má ideia.Talvez arranje os copos. De papel!

A Serra verde avistava-se á frente deles.O vento trazia a maresia, a imagem das ondas que vinham rebentar na praia num fragor surdo e simultaneamente belo.

Vítor respirou fundo, grato e agradecido mas quando se virou para lhe sorrir, o homem desaparecera, engolido pelo nada.

- Sim.Foi bom.Um raro instante.E a morte está ao virar da esquina,

*adaptado do texto dramático do autor “Velha Guarda”

- imagem extraída do Pinterest

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 27/08/2024
Reeditado em 02/10/2024
Código do texto: T8138181
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