Não há pedra sem defeito
“Não há pedra sem defeito”
Jogo do Brasil. França de Zidane e companhia. Ninguém nas ruas. Nem os mais apaixonados amantes se encontram. Silêncio sepulcral. Estamos reunidos na sala. A nossa seleção toma um baile. De repente Xubra Lee vê algo balançando na janela. Quando fora pegar um guaraná, para desembuchar da pipoca que era devorada aos montões.
Pipoca é algo que não se pára de comer. Futebol é algo que não se pára de assistir. Nem quando está perdendo. E uma impressão, um relance, um “trompe d’oiel”, é algo que não se tira da cabeça facilmente. A inquietude natural de Xubra, se rompe numa corrida à sacada do quarto de seus pais. Gol de Henry, aos doze minutos do segundo tempo. Depois de levar chapeuzinho do Zidane e tudo mais, o Brasil se ferra. O povo grita. Alguns “do contra” estouram foguetes. Um som seco. Pá!
- Vocês ouviram?
- O que, Xubras?
- O barulho.
- Claro que sim.
- Então corre aqui e vejam o que achei.
Ninguém queria sair diante da iminente tragédia futebolística. Enquanto Roberto Carlos amarrava suas meias neste sábado calorento e calado. Um homem com máscara na cara, roupa preta, luvas e tudo mais que se vê nos filmes, saltava do nosso prédio para o telhado do lado esquerdo.
- A corda está saindo do apartamento do grego.
- Ah, não! O senhor Smaragdos?
- Filho, corre lá em cima e veja o que está acontecendo.
Ao abrir a porta, o Xubrão filhote depara-se com o velho caído no seu tapete persa. Quantas vezes conversara com ele sobre aquele Bokara em forma de diamante, pelo tamanho era um Do-zar. Apesar de sua força e estatura, Xubrão tem apenas doze anos, e o ancião ferido mortalmente em seus braços é muito pesado. Tombando levemente sua cabeça, tentou confortá-lo.
- Calma, papai é médico, ele já vem.
- Jovem? Faça-me um favor.
- O que é?
- Recupere a pedra e fique com ela.
Era a primeira vez que entrava além da enorme e carregada sala do velho aventureiro. O corredor estava aberto. Muitos quadros, esculturas. De mil lugares que ele conhecera. Por intermédio de seu pai, sabia que ele havia morado vários anos na Colômbia e depois no Zimbábue. No mapa-mundi em frente, verificou onde ficava aquele país quase esquecido.
Xubra Lee persegue o ladrão assassino pelo quarteirão. Dali de cima, especialmente do quarto do senhor, Xubrão pode acompanhar tudo. Um binóculo de longo alcance. Um telescópio com computador acoplado. É um equipamento e tanto. Ele não sairá do alcance.
Lá embaixo Xubra, movimentando-se como no Grand Theft Auto (GTA) Liberty City do Playstation, entra na primeira casa. É um puteiro. A menina não se abala. Acostumada que é com os gibis de Manara em casa, e as gravuras e poemas eróticos do pai. Tranqüila passa pelos casais. Nada do sujeito.
Monitorando de cima e comunicando-se por torpedos no celular, Xubrão é o “Poderoso Chefão”. Orienta e ordena. A segunda casa é típica dos anos sessenta. Curvilínea. E ao lado uma cabeleireira e centro de depilação. Saltando habilmente entre escovas e chapinhas, Lee nada vê.
Uma sombra mostra que o bandido está na casa velha, que abriga dois enormes filas brasileiros. O mesmo aproveita para abrir o saquinho de estopa contendo uma espetacular esmeralda. Enorme. Quadradona. Corte clássico. Talhe em degrau. As quatro pontas truncadas gerando um aspecto octogonal. Linda.
Quando Xubra Lee adentra, subindo pela mangueira, a casa esconderijo. Rapidamente ele foge. No quarto escuro e mal cuidado ela encontra recortes de jornal. Pistas de que o roubo fora cuidadosamente planejado. Até a foto de jornal do senhor Smaragdos ao lado do governador de estado está lá. Era em Campo Verde, Santa Terezinha de Goiás.
A próxima casa é um escritório de advogados. Lá de cima, Xubrão percebe que os telhados não se comunicam. É o momento de Xubra poder alcançá-lo. Sentindo-se o próprio urso de cara rasgada do Bad Fur Day da Nitendo, Xubra infiltra-se pelo vizinho. Um novo rico que compra Audi A3, passa férias na Bahia e acha o máximo viajar para Miami e fazer compras. Um Zé Mané, porém útil.
- Parado aí!
- Parado você!
Disparando um tiro com provavelmente uma nove milímetros militar, ele quase fuzila Xubra. Pequena e rápida, ela desaparece entre as redes de praia de gosto duvidoso do vizinho. Imitando os passos do personagem do Splinter cell do Playstation, ela tem que descobrir o que fazer, Xubra salta para a casa de esquina.
Respirando ainda ofegante, recebe a mensagem de Xubrão para escalar a casa ao lado. Dentro dos pertences do grego, uma arma! Um rara Lugger, da década de 40. Provavelmente ele conseguira na II Grande Guerra. Revirando as coisas do morto fica óbvio que ele era um grande colecionador de gemas. Pedras preciosas. E morando ali, em cima deles!
Xubra sobe cuidadosamente entre as casa velhas que restam até a outra esquina, onde parece ser uma construção de um restaurante. Certamente estes infectos “por kilo” da vida... Mas não sem antes comer uma goiaba no pé. Xubrão ao longe vê tudo e não deixa de soltar uma risadinha. Sua irmã, na sabedoria dos seus parcos e minguados 10 anos de idade, adorava goiabas. Até com bicho. Indubitavelmente que seu lema era “Nobiscum mutamba est”.
O suspeito desaparece da visão de Xubrão. A noite chega rápido. Ainda bem que o equipamento tipo Splinter cell do Playstation, inclui visão noturna e infravermelho. Além de sensores de calor. Vários cães latiam. Denunciando a presença do cara entre a garagem de injeção eletrônica e o moto clube. Novamente Xubra Lee terá que transpor os telhados com um belo salto. Para ela isso não é nada. Segue a linha de Batman do Futuro, Nitendo. Ele é muito habilidoso, utilizando mortais. Chegará a hora em que terá que fazer a escolha certa ou senão morrerá ou perderá o jogo.
Xubrão Filhote detesta aquele moto-clube, um bando de bobos querendo ser jovens montando máquinas que não conseguem controlar. Fazer zerinho, colocar macacas na garupa. Coisa de frouxo. Homem bom conquista com o olhar. De esmeralda, de preferência. Sem dinheiro, ou subterfúgios. Ele sabe que é assim. Bonito de doer, as mulheres já o enxergam de maneira diversa. Mas Xubrão só tem olhos para os games e sua adorada irmã, Xubra Lee.
- Xubra, ele vai ter que subir entre a casa de Genética Avançada e os dois vizinhos da esquerda do prédio. Não há como ele escapar. Tenho o ângulo de mira perfeito. Achei também um FAL, belga. Tranqüilo.
- Pode deixar. Vou deslizar entre as duas caixas d’água e me esconder ali. Quando ele subir, me avise.
- Ele está armado.
- Eu sei. Isso eu resolvo.
Sentado entre livros e livros em espanhol e inglês, fotos das cataratas de Vitória, desenhos de minas, de pedras, até uma foto de um sujeito chamado Rhodes vestindo aquelas roupas do século XIX que os ingleses usavam na África. Xubrão Filhote aguarda a saída do matador de seu esconderijo logo ao lado de Xubra Lee.
Aproveitou aqueles breves minutos que antecederam a luta final para ler algo mais sobre esmeraldas. Uma das quatro pedras preciosas, eram cinco, mas parece que a ametista tornou-se comum, como mulher loira de chapinha. Ficou o diamante, o rubi, a safira e a esmeralda. A esmeralda veio de uma fazenda de Goiás. E a substituição do A1+ pelo Cr3 +++ é que deu a cor verde característica do mineral berilo (Al2Be3Si6O18). Utilizando o estudo das inclusões por fluorescência e difração de Rx percebeu-se que ela praticamente não tinha inclusões, ou defeitos. Um pedra perfeita.
Enquanto apóia a mão esquerda com a arma, para depois colocar força na direita e subir, o marginal toma um monumental pisão de Xubra. A pistola cai no pneu cheio de Aedes e água limpa do canteiro da velhinha que ali mora com seus gatos nojentos e copulantes. Mas se Xubra pensou que ele irá desistir, enganou-se. Num movimento calculado, ele joga o corpo para cima e cai em pé no telhado. Bem entre os dois pontos de referência anteriormente estabelecidos com seu irmão.
Dando a volta, pulando entre os telhados, agora ambos encontram-se frente-à-frente, nas mesmas calhas longas em que na sua fuga inicial, o fugitivo havia caído e seguido adiante. Como um felino, Xubra Lee desfila rodeando o seu algoz.
- Eu não sabia que enfrentaria um anão.
- Eu não sou anão. Disse Xubra retirando sua bala-clava.
- Mas você é uma menina! E loira!
Nem bem termina a frase o pobre adversário de Xubra leva um violento chute nos testículos. Mal sabe que o apelido da menina veneno tem origem em dois codinomes. Xubra de X-B-Ultra e Lee de Bruce Lee. Nascida e criada entre lutadores, a garotinha é definitivamente tudo, menos uma garotinha. Na seqüência bem feita de golpes, tal e qual o Final Fight X, de lutas de rua, utilizando a técnica de Kyle, Xubra surra impiedosamente o estupefato ladrão.
Xubrão Filhote desce pelo rapel aproximando-se de ambos com o FAL em suas costas.
Recuperado do abalo e surpresa iniciais, o assassino mostra que também é treinado. Desferindo potentes pernadas em direção a Xubra. Ela agacha-se e num movimento descoordenado, que enquanto tentava acertar o queixo do lutador e desviava-se do murro na cara, ela é atingida por uma pesada pezada bem no meio dos peitos. Jogando-a para longe e batendo a cabeça na antena de TV.
O covarde então se aproxima bem, retira a gema do bolso e envolvendo ambas as mãos no pescocinho da menina, vai apertando sem dó.
- Onde está sua valentia?
Seu pequeno corpo estrebucha quando uma sombra tampa o seu rosto. Ao virar-se pra trás nem dá tempo para nada. Uma seca e duríssima porrada na têmpora. Xubrão Filhote desfere o golpe fatal. E cata no ar a pedra que de direito é sua. Após reanimar sua querida irmã, sentencia:
- Você se esqueceu de mim?
- Nunca, pensei que resolveria sozinha...
- Somos uma família...
- Sei que não há pedra sem defeito. Mas com efeito, se for bem feito. O bem pode ser refeito.
JB Alencastro