Jacinto livre
O ano era 1888, Jacinto completara dezesseis anos e sempre ouvira de sua mãe, que era um homem livre. Agora aos dezesseis, deveria usar sapatos, ela insistia. - Pelo menos para assistir a missa! Mas o menino tinha desconfortos ao usar a vestimenta que fora distribuída pelas sinhás, gostava mesmo era das calças de algodão rústico.
Agora sua mãe, no leito de morte o olhava e sorria. Dizia com lágrimas nos olhos, que era finalmente uma mulher livre. Jacinto sorria de volta sem entender muito bem o que significava a tal "liberdade".
Onde ficava esse lugar? Tinha comida e esteira para se deitar? Passava a noite em claro, velando sua mãe moribunda e ouvindo o que diziam os demais escravizados naquela senzala. Muitos comentavam que também não sabiam o que fazer com suas "Cartas de Alforria".
Um grupo ia partir cedo para um lugar onde outros negros foragidos no passado, moravam. Um tal de Quilombo... Sua mãe queria que ele os acompanhasse. Assim ela poderia partir em paz. Mas o rapaz, jovem, acostumado ao terreiro de café, não queria viver outra vida, deixar sua mãe nos seus últimos dias, viver em outro mundo, sabe-se lá como... Teimoso, o ingênuo ficara na fazenda após a partida do grupo. Permanecera ali após o enterro de sua mãe. Lidou com o café enquanto era a principal atividade da fazenda, depois cuidava dos bois que foram chegando aos montes.
A cada manhã, a cada toada, a cada bater do sino, Jacinto ia se tornando um homem mais resignado da sua lida diária e da sua condição de trabalhador na fazenda Boa Esperança, que o proporcionava viver, agora aos trinta e cinco anos, com Aninha e os filhos Pedro e Maria. Onde aos domingos, ouvia a missa com a família, da janela da varanda da Casa Grande, como os demais trabalhadores. Após a celebração, ele voltava para casa com a mulher e os filhos, caminhando pela estrada de chão batido, com seus sapatos velhos e sujos de barro, aquele calçado a que seus pés nunca se acostumaram.
Mas o rito era esse e ele o cumpria piamente. Finalmente ao chegar em casa, ele descalçava seus sapatos na varanda da pequena moradia. Fitava aqueles pés largos, finalmente libertos e lembrava da mãezinha que há muito se fora. Mirava o céu com o sol a pino, admirava o baobá frondoso que oferecia sombra farta e em meio a uma oração, agradecia o prato de feijão com farinha que Aninha o servia em silêncio. A cada quisso, experimentava um sentimento de saudade e gratidão. Pensava naqueles que haviam partido e imaginava como era a vida que teriam agora. Às vezes julgava entender o que sua mãe lhe dizia... Era realmente um homem livre, desde o ventre da sua mãe.