A mãe

Conto: A mãe

Anos 80. Joaquim era um rapaz de 17 anos. Estudava de manhã e trabalhava à tarde, era vendedor de livros. Como a maioria dos jovens, estava perdido, não tinha rumo na vida. Foi abandonado pela mãe logo depois que nasceu e seu pai, seu melhor e único amigo, acabara de falecer. Definitivamente, Joaquim não tinha mais ninguém.

Herdou do pai a biblioteca, uma vitrola, problema com mulheres e as dores dos livros: O tormento de saber que o mundo literário guarda uma perfeição que é inalcançável no mundo real.

Joaquim era um ótimo aluno, sentava na primeira fila da sala de aula. Os professores valorizavam seu empenho e vislumbravam um futuro próspero para o estudante.

Porém, entre os seus pares, vivenciava o oposto. Era introspectivo, não sabia se comunicar com os outros jovens, sentia que, por mais que tivessem a mesma idade, pertenciam a universos diferentes.

As garotas, ah, as garotas... Seu gênero literário favorito. Enquanto trabalhava na livraria, se pegava observando, escondido, as pequenas moças e grandes mulheres que lá frequentavam. Era possível ler uma dama pela forma como ela dava "bom dia", pedia informação, pelo jeito que suas mãos passeavam pelas estantes - algumas faziam carinho, outras feriam os livros - era capaz de descobrir o humor pelo sentimento dos olhos ao encontrarem o que procuravam. Algumas sorriam, mas eram tristes, outras ainda não traziam expressão no rosto, mas possuíam olhos alegres.

Se quer conhecer alguém, não preste atenção nas palavras. Leia os olhos. Os olhos revelam tudo, até verdades não confessadas.

Joaquim adorava essa parte. Ler livros permite que possamos ler pessoas.

Em uma dessas leituras secretas, encontrou um livro diferente.

Em uma quarta-feira ensolarada, Joaquim trabalhava ouvindo Lizst em sua vitrola. Ele sempre colocava alguma música para escutar durante o serviço e preferia as clássicas. Aprendeu com o pai.

- Música clássica relaxa o espírito, Quinzinho. - Dizia seu Nonato.

- É verdade, pai. Mas não silencia a saudade.

A frase saiu por devaneio. Não temos a saudade, ela que é dona da gente.

O dia estava calmo, perfeitamente calmo, era apenas mais um dia comum, sem nada de novo.

Eis que a porta da livraria abre. E com isso, não foi apenas mais um livro novo para ler, foi a primeira vez que Joaquim foi lido por alguém.

Seu nome era Cecília. Joaquim a conhecia de vista, estudavam na mesma escola, sabia o nome dela, não quem era. Cecília era uma donzela. 17 anos. Rosto fino, nariz delicado e pequeno, longos cabelos castanhos, olhos de céu, menina com corpo de mulher. Já assassinava a inocência dos garotos da região. Era motivo de briga na escola, de sonho na cama, de desejos reprimidos entre os homens mais velhos, pais de suas amigas. Era motivo de morte entre os amantes que morriam sem sequer saber amar ou conhecer o amor.

Sua mãe era dona de casa, Dona Martha. Seu pai, senhor Getúlio, era policial e muito respeitado entre os cidadãos. Na frente de seus pais, encenava seu teatro de boa menina, pura, imaculada, incapaz de cometer os pecados da carne. Foi a forma que encontrou para sobreviver: guardar duas pessoas em um corpo.

Cecília passeava pelas estantes, procurava algum livro ou fingia procurar. Joaquim assistia, atento, a cada um de seus movimentos, e escrevia nas páginas do silêncio os pensamentos que jamais ousaria expressar, nem que isso lhe custasse a vida.

Cecília pegou um livro e se dirigiu até o caixa.

Pagou, Joaquim embrulhou o livro (Mario Quintana) e agradeceu.

- Por que você é tão quieto? Eu já vi você na escola.

- Porque eu não tenho nada para falar.

- Por que não tenta encontrar as palavras?

- Elas fogem. Ir atrás delas é cansativo.

- Eu também não gosto das palavras. Prefiro ações.

- Eu prefiro o sossego.

- Eu, não. Não gosto de ficar parada. Você já leu todos esses livros?

- A maioria. Gosta de Mario Quintana?

- Não, é para minha mãe.

- Sua mãe é uma mulher de bom gosto.

- Dizem muito isso. Qual seu nome?

- Joaquim, e o seu?

- Cecília. Você vai fazer alguma coisa amanhã?

- Isso aqui.

- Quer dar um passeio comigo?

- Por que está me convidando para passear com você?

- Por que não posso convidar?

- Eu não conheço você.

- Eu também não conheço você. Mais um motivo para convidar.

Eis o fato: Cecília procurava uma aventura nova, Joaquim queria ser encontrado, mas tinha medo.

- Amanhã, virei aqui buscar você e daremos uma volta.

Cecília falou e foi embora. Joaquim não teve chance de resposta.

Como combinado, Cecília foi até a livraria buscar Joaquim e os dois foram até um parque. Joaquim se impressionou: era a primeira vez que via uma mulher de batom tão perto assim. Passearam e conversaram mais.

- O que você quer ser depois que terminar a escola?

- Eu não sei. E você?

- A primeira de alguém.

- Como assim?

- Quero ser a primeira a se despir para um homem.

- Por que isso?

- Assim, não morro. Serei eterna.

- Não há outros jeitos de fazer isso?

- Todos os outros são tediosos. Você é virgem?

- Sou.

- Já beijou uma mulher?

- Não.

- Gostaria de beijar?

- Sim.

- Gostaria de me beijar?

- Por que está fazendo isso comigo?

- Não estou fazendo nada, ainda. Você não permitiu.

- Ainda não entendo você...

- Não entenda, toque. Uma palavra: tédio.

Cecília colocou as mãos em volta do pescoço de Joaquim e o beijou. Espantando, Joaquim manteve os olhos abertos. Quando o que queremos fazer acontece, não sabemos o que fazer.

Cecília beijou com cuidado, sabia que Joaquim era frágil. Tocou em seus lábios como se estivesse dançando balé, com delicadeza e precisão em cada movimento.

Joaquim não se mexeu, mas algo dentro de si emergiu: o gosto pelo contato feminino.

- Gostou?

- Gostei.

- Como foi?

- Eterno.

Desde então, começaram a sair mais. Cecília era uma novidade na vida de Joaquim e Joaquim era um novo sabor ao paladar de Cecília. As conversas se transformaram em confidências e das verdades compartilhadas, um dia compartilharam a mesma cama. Joaquim não era mais virgem. Cecília enfim era eterna.

Em uma confidência, conheceram os fantasmas que os assombravam:

- Qual seu maior medo?

- Envelhecer. E o seu?

- Morrer afogado. Eu não sei nadar.

- Não se preocupe, isso nunca vai acontecer.

- Por que tem medo de envelhecer?

- Porque a beleza sempre vai embora. A única coisa que não nos abandona são as memórias.

Silêncio. Joaquim bem sabia, as lembranças de seu pai...

Cecília retomou:

- Mamãe e papai querem conhecer você.

Já eram namorados. Joaquim não conheceu apenas os pais de Cecília, mas sua família completa. Tias, tios, avós, primos e primas foram convidados para presenciar um momento tão ilustre na vida da pequena e doce Cecília.

Todos os familiares estavam sentados à mesa quando Joaquim chegou, menos a mãe. Dona Martha estava na cozinha, cuidando do banquete.

Durante um instante da confraternização, Getúlio chamou Joaquim para uma conversa em particular. Foram até o quintal.

- Meu jovem - começou o patriarca - quero que saiba que nunca vi Cecília tão feliz e lhe agradeço por isso.

- Eu gosto muito de sua filha, seu Getúlio.

- Espero que continue assim. Eu o chamei aqui, porque, como pai, quero saber e tenho este direito: quais suas intenções com minha filha?

- Minhas intenções são as melhores possíveis.

- Bom saber. Como vão seus pais?

- Meu pai faleceu. Não conheci minha mãe. Moro sozinho.

- Sinto muito, meu jovem. Já estive no seu lugar.

- Tudo bem.

Getúlio deixou passar um tempo, depois proferiu:

- Joaquim, quero que case com a minha filha.

- Mas somos muito jovens...

- Qual o problema? Eu também me casei jovem.

- Senhor, eu ainda não estou pronto para assumir um compromisso tão sério.

- Você não disse que tem a melhor das intenções? Pois então. Isso de estar pronto... Não se preocupe, todos estamos, só não sabemos que estamos.

- Mas, senhor...

- Eu quero que você se case com a minha filha. Fui claro?

Era um ultimato. Joaquim assentiu.

Após ter seu destino selado, o almoço foi servido. Joaquim estava sem fome, não tinha forças para se alimentar depois da conversa definitiva que tivera. Pediu licença e foi até o banheiro. Lavou as mãos, molhou o rosto.

Saiu. Enquanto andava até a sala de jantar, viu que uma porta estava aberta. Era o quarto dos anfitriões. Algo atiçou sua curiosidade. Entrou.

Uma cama de casal, livros na cabeceira, telefone de discar.

Foi até os livros. Diversos de poesia. Eram da minha mãe de Cecília. Entre eles, encontrou o livro que vendeu. Abriu. Havia uma foto dentro. Cecília e seus pais. Pegou a foto.

Dona Martha era linda. Como era linda. Mais ainda do que Cecília. Não haviam sido apresentados, ela estava ocupada, mas Joaquim estava agora cumprimentando e admirando sua beleza.

Guardou a foto no livro, fechou.

Se antes não estava com fome, seu apetite reapareceu. Voltou para a sala.

Com o casamento marcado, Joaquim passou a frequentar a casa de Cecília só para ver dona Martha. Os olhos de céu da matriarca eram mais vivos, o corpo era mais volumoso, o sorriso era mais encantador. Tudo em dona Martha era mais bonito do que em Cecília.

Joaquim conversava com ela, recomendava livros, levava livros de presente. Agradava a sogra que desejava como amante.

Estava prometido para a filha, mas queria se cumprir para a mãe.

Um dia, não foi para a escola. Cecília não o encontrou. Getúlio estava trabalhando. De tanto frequentar, conhecia a rotina da família: Dona Martha estava sozinha. Não temos desejos, eles que nos têm.

Foi até lá.

Apertou a campainha, a sogra o recebeu.

- Joaquim, Cecília não está, por que não foi para a escola?

- Eu sei que ela não está. Não pude ir hoje, posso entrar, por favor?

Dona Martha abriu. Lá dentro, serviu chá com biscoitos.

- Obrigado, me senti indisposto hoje.

- Essas coisas acontecem. Então, ansioso para o casamento?

- Na verdade, não.

- Por que não?

- Porque não posso me casar com sua filha, dona Martha.

- Por que não pode?

- Porque, sempre que estou com sua filha, penso na senhora. Sempre que beijo sua filha imagino seus lábios. Sempre que toco sua filha imagino seu corpo.

- O que está dizendo, Joaquim?

- Não consigo mais controlar. Eu desejo a senhora.

- O que está dizendo, garoto?

- A verdade.

Joaquim se aproximou, mas dona Martha o repeliu.

- Não posso fazer isso com minha filha.

- E eu não posso fazer isso comigo. Me dê apenas um beijo e me caso com ela.

- Joaquim, o que deu em você? Qual a diferença entre mim e minha filha?

- Eu não desejei Cecília, ela aconteceu. A senhora, eu quero.

- Infelizmente, não posso fazer isso.

- Não poderei me casar com ela.

- Meu marido não concordará, irá matar você.

- De qualquer maneira, eu já estou morto.

Em uma tarde triste, Cecília voltou para casa, chorando.

- O que houve, querida? - o pai quis saber, alarmado.

- O Joaquim terminou tudo comigo...

- Como ele ousa?

- Ele disse que se apaixonou por outra garota da escola e não pode mais me ver.

- Aquele moleque! Vou acabar com ele!

- Não, pai. Eu o amo, não faça mal a ele. Só queria que ele me amasse...

Três dias depois, sábado, Cecília telefonou para a livraria de Joaquim.

- Joaquim, meu bem, por que está fazendo isso comigo, com a gente?

- Cecília, eu não posso mais ver você.

- Mas por quê? O que houve?

- Eu não consigo mais viver esta mentira.

- Para a maioria das pessoas é tão fácil.

- Mas eu não consigo.

- Pelo menos, me diz quem é a garota...

Joaquim suspirou. Eis a hora da confissão.

- Nunca houve outra garota da escola, Cecília. Eu me apaixonei pela sua mãe. Seu pai me obrigou a casar com você, eu não queria. É a sua mãe que eu quero. Eu não queria machucar você, mas isso estava me machucando. Não é possível fazer ninguém feliz se a gente não está feliz.

Cecília desligou. A mãe estava na sala. O pai havia dado uma saída. Foi até o escritório, abriu a gaveta. A arma do pai.

Pegou.

Passos.

- Mãe... - Cecília chorava.

Dona Martha se virou.

- Cecília, meu amor, o que está fazendo? - Espanto e medo na voz.

- Foi você, mãe. Você roubou o Joaquim de mim...

As duas eram agora um livro de suspense.

- Não, Cecília, eu jamais faria isso...

- Ele me contou, mãe. Ele me contou.

- Não, acredita em mim, meu amor. Abaixa isso...

- Como pôde fazer isso comigo, mãe? O Joaquim era o meu amor...

- Não, Cecília, você nunca o teve! - Dona Martha gritou em desespero.

Desespero traz a verdade, é inimigo da mentira.

Cecília disparou. No peito. Fatal.

Namorada traída castigando a amante. Filha escolhendo os sentimentos e perdendo a mãe.

Sangue era imenso, uma poça. Cecília se arrependeu, correu até Martha.

- Mamãe... Desculpa, mamãe...

- Minha filha... Minha filha... - Martha agonizava, tentava falar.

- Eu sinto muito, mamãe.

- Me desculpe, minha filha. Eu gostei. Fazia... Tanto tempo que eu... Não me sentia desejada.

Dona Martha fechou os olhos. Estava morta.

Cecília ouviu a verdade e doeu. A mãe gostou, não traiu, mas quis.

Eis a verdadeira traição: o desejo de trair importa mais do que a traição.

Cecília levou a arma até a cabeça e disparou.

As duas morreram juntas, abraçadas em sua solidão.

Dois dias depois, o jornal anunciou uma tragédia familiar: filha mata mãe e depois se suicida. Por que?

Joaquim leu a matéria e ficou chocado. Ele sabia por quê.

Foi até um rio e pulou. De roupa e sapato. Morreu afogado. O corpo foi encontrado horas depois.

Alguns sentimentos não podem ser vividos. Outros, acontecem, mas não merecem existir. E outros, são os que a gente quer que aconteçam, mas são proibidos, é melhor não acordá-los.

Três sentimentos, três mortes.

Linx Bonarde de Oliveira
Enviado por Linx Bonarde de Oliveira em 21/08/2024
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