Enquanto Meu Corpo Jaz
Enquanto meu corpo jaz e meu sangue se esvai como água de torneira aberta, relembro os momentos dessa vida que se finda. Recordo-me com inútil rancor das tantas falhas, pois minha incompetência não foi capaz de trazer qualquer tipo de resultado, salvo meus instantes finais. É indolor e lento. Não sinto tristezas; os pesares, enterrei-os quando cumpri meu único êxito, o mais lindo e desejado pelos homens.
Queria ser fazedor de lápis. Nem sei até hoje se essa profissão sequer existe, mas a idealizei por completo, com um vasto planejamento de carreira à longo prazo, meu emprego de fazedor de lápis. Uma máquina, criada por mim, viria a revolucionar o mundo. Sua funcionalidade, muito simples: dizer no microfone “faça um lápis azul-claro” e em questão de dois ou três segundos, perfeito, saem pelo outro lado uma dezena de lápis azuis-claros, majestosamente esculpidos, dentro de uma caixinha uniforme.
Toda a minha infância foi gasta com esse projeto. Isolava-me, com o intuito de evitar distrações. As paredes do meu quarto eram completamente preenchidas por desenhos coloridos de minha criação, de modo que todo o processo de realização dos lápis azuis-claros era muito evidente para mim. O tempo passou, e pude enfim descobrir o motivo pelo qual minha máquina nunca saiu do papel: primeiro, porque a humanidade ainda não é avançada o suficiente para tal. Segundo, que a vida exige algo que dê dinheiro, e rápido.
Assim, arrumei um emprego qualquer, atendendo telefones de suicidas em potencial em um centro de prevenções. Recebia menos que um salário-mínimo, no entanto, a falta de complexidade do emprego compensava. Dizia apenas frases prontas “sua mãe te ama” ou “você é muito querido”. É impossível dizer se de fato ajudei a evitar que alguém se matasse, entretanto, dado meu histórico cruel, pouco devo ter feito pelas pobres almas dessas pessoas.
Passei quase um ano direto trabalhando em um cubículo com um telefone, até que o centro de prevenções passou por uma reforma. Pintaram as paredes de um tom vivaz, substituíram os antigos bancos capengas por novas cadeiras de couro, e instalaram uma televisão gigantesca, que poderia ser usada pelos funcionários em horário de almoço. Foi em um desses almoços, saboreados por um pão com tomate e rúcula adormecido com um copo de chá, que a mulher que atendia telefonemas ao meu lado, Carolina, ligou em um canal de crítica alimentícia. Acompanhei com atenção um cozinheiro preparar um frango coreano qualquer. Nunca me interessara por culinária. Naquele dia, contudo, decidi que abriria um restaurante.
Foi apenas nascer o sol para que entregasse minha demissão para a chefe. Antonella não entendeu quando um de seus funcionários mais longínquos pediu para se desligar, mas era uma mulher débil demais para se importar com minha partida. Os colegas a seguiram, recebi alguns poucos acenos com a mão em sinal de adeus.
“Alexandre Marques” dizia o crachá. Simpatia não era seu forte. Respondia minhas perguntas sobre construções e terrenos com uma rudeza extrema, mas ao menos foi capaz de arrumar uma casa antiga para o restaurante. Não era arrumada. Estivera fechada por anos, contudo uma limpeza e boas reformas seriam o bastante para reerguê-la.
O único funcionário da obra fui eu. Fiz aquele lugar com as próprias mãos. Após alguns meses de muita argamassa e marteladas no dedo – um episodio irrelevante para nossa história, mas que carregou meu dedo mindinho da mão esquerda – conclui o local. Era vistoso: luminárias chiques sobre as mesas, cadeiras de madeira de verdade, matérias da cozinha de última geração.
A inauguração, contudo, foi um desastre tremendo. Se foram preenchidas quatro mesas foram muitas. Não podia esconder minha decepção; meus olhos marejavam. Assim se seguiu por todo o período em que o restaurante se manteve em pé – poucos clientes e um serviço medíocre.
Afundado em dívidas, não restava outra opção além de fechar. Na última noite em que abri o salão, Carolina, minha colega da época do centro de prevenções apareceu com marido, coincidentemente, o corretor de imóveis mal-educado que me vendera o local. Naquele ponto, tudo que envolvia o restaurante me fadigava, e eu facilmente atribuía a culpa ao tal Alexandre Marques. Esforcei-me para cozinhar o pior prato possível. Quando cheguei, o casal não dialogava. Pensei em Carolina, em seus dentes tortos e seu cabelo esvoaçado vermelho, em como nunca me sentira atraído por ela, mas naquele momento, decidi que moveria mundos por Carolina. E assim foi.
Segui-a até em casa e aguardei que saísse novamente, para cruzarmos despretensiosamente pelas avenidas. Acabamos nos descobrindo bastante parecidos e iniciamos encontros noturnos as escondidas em um terreno baldio. Nos amávamos desesperadamente. Entregava-me a ela com devoção. Carolina me olhava como rodo homem sonha ser olhado, mas afirmava me ter como um passatempo em momentos de tédio e crise.
Agora, traço meu dia derradeiro. Depois de semanas nos encontrando sorrateiramente na escuridão, Carolina me convidou com seu ar de boa moca para sua casa. Aceitei, relutante.
Já éramos um quando ouvi o som de chave. Nem se quisesse poderia ter me escondido. Meu rosto tocava o chão quando entendi que três tiros haviam me perfurado. Estava e permaneço entre uma poça de sangue fresco.
Não importa, foi amor, e, portanto, sucedi em ao menos uma coisa que me propus. Depois de uma vida de derroas e tentativas em vão, enfim morri por amor. Não construí, não deixei herdeiros de insucesso, não fiz nenhum lápis-azuis, mas, meu corpo jaz por ti, Carolina.