Era uma discussão acalorada. Os nervos reverberaram toda a tensão. Equivalente ao choque elétrico. O ódio trouxe um devaneio um descritível. De repente, todas as coisas ruins pularam para o verbo, se transformaram em fonemas e as mensagens voaram até o agressor. Por muito tempo, aguentou calada todos os impropérios e maus-tratos. Marly e Octávio eram um casal comum. Ela professora e, ele contador. Curiosamente, Marly era professora de Matemática e Estatística. Amava os números... transformava o mundo em números... Já Octávio organizava os números, controlava-os... Numa sociedade patriarca e machista, é o homem que tem a última palavra... não de vez em quando, mas sempre. Tudo parecia sincronizado... Mas, de repente, ele se tornara um feito e, a pobre mulher, a vassala subjugada... E, aí, a convivência foi se tornando inviável... impossível. Na derradeira discussão, concordaram que deveriam se separar... Havia uma única filha no meio disso tudo. Dentro de cada ser humano, dói ser um estorvo... um óbice... uma mera e boa pedra do meio do caminho. Ou será, como dizia o poeta, tinha uma pedra do meio do caminho. Naturalmente, a filha ficou com a mãe. E, o pai nunca mais a visitou. A separação foi da mulher e da filha. Como ele mesmo dizia, era um "ex-pai"... Como isto fosse possível... Pagava pensão alimentícia, mas jamais a visitou. Jamais demonstrou nem um pingo de afeto... Ele amava os números, as contas... Ela, amava os números e sua representação no mundo, mas não aquela situação algorítimica que fazia procurar uma solução. Um algoritmo descreve as ações que manipulam dados iniciais para transformá-los em uma solução de um problema qualquer. Enfim, tudo tinha jeito. Cada um para seu lado, a vida seguiu... Reticências caíram pela janela. Mas, dentro de mim, havia um vácuo de afeto paterno. Como preenchê-lo? Como perdoar? Enfim, muitas perguntas respondidas com o silêncio e com os números. Dentro de mim, a planilha dormia com ressentimentos.