É possível
Renata chegou ao grupo escolar acompanhada da mãe para fazer a matrícula na primeira série e mal conseguia disfarçar a ansiedade. Há muito desejava ir para a escola, mas não pôde fazer a pré-escola que era muito concorrida.
A irmã mais velha, percebendo o interesse da caçula, improvisou no quintal de casa uma tábua presa ao muro que serviu como lousa e arranjou alguns pedaços de carvão para escrever. Renatinha, como era chamada, aprendeu as vogais e a escrever seu primeiro nome em papéis de embrulhar pão que a mãe desamassava com todo cuidado.
No primeiro dia de aula, entrou na sala sorridente, vestindo um uniforme de segunda mão que a mãe comprou a prestações de uma prima mais velha e ajustou na máquina de costurar. Os congas, sim, eram novinhos em folha! Quando a menina os calçou e começou a andar, parecia que seus pés estavam flutuando. Sentou-se na primeira carteira e ficou triste quando a professora a trocou de lugar com outra colega que era mais baixinha do que ela.
Na hora do recreio, saíram enfileirados, meninas de um lado e meninos do outro, em direção à cantina. A merendeira, Dona Neide, servia em pratos de plástico coloridos uma sopa rala de carne de soja. Renata até repetiu, já que havia tomado um café da manhã pouco reforçado em casa.
O grupo escolar era uma construção improvisada, com salas de madeira, onde as crianças estudavam até a quarta série, com a promessa de que um prédio maior em alvenaria seria construído.
Essa promessa foi cumprida: ao término do ciclo, as crianças foram transferidas para o novo prédio. As salas tinham ventiladores, o que significou o fim do calor insuportável nas salas de madeira. Havia uma quadra de esportes, um pátio maior e apenas a área de jardinagem não estava concluída.
A professora de Ciências criou um projeto para ajudar no paisagismo da escola e, ao mesmo tempo, desenvolver conteúdos de educação ambiental. A prefeitura doou mudas de árvores. Ao redor da escola, havia espaço suficiente para plantar pitanga, araucária, ipê-amarelo, sibipiruna, jabuticabeira e ainda fazer uma horta de plantas medicinais e hortaliças.
Esse projeto nunca saiu da memória de Renata. O contato direto com a terra, as explicações da professora sobre os cuidados com as plantas e a vivência diária nas regas, acompanhando o crescimento de cada espécie, fizeram com que a menina desenvolvesse um gosto por esse tipo de atividade.
A turminha que inaugurou a escola permaneceu junta até a formatura da oitava série. Aquela escola significava muito para eles, pois haviam participado de sua construção desde a época em que era apenas um sonho rabiscado em papéis expostos nas paredes do grupo escolar.
Outra lembrança que Renata guarda é que, às sextas-feiras, ela ia bem cedinho à escola com as amigas para encerar o chão da sala de aula. Depois, passavam a enceradeira e colocavam um tapetinho na porta. Os uniformes já estavam nas mochilas, e elas rapidamente se vestiam para aguardar a professora. Gostavam de ver a reação dela ao chegar na sala e se deparar com aquele brilho no chão e o capricho na arrumação.
Todos os dias havia lição de casa, e essa era a parte que Renata menos gostava. Não porque tivesse preguiça de fazer as tarefas, mas porque, quase sempre, não encontrava os recursos e materiais que precisava.
Na época, as famílias que podiam mais compravam a enciclopédia Barsa. O pai de Renata fez prestações a perder de vista para adquirir uma enciclopédia mais barata.
Nas lições de matemática, Renata errava os cálculos e, na falta de uma borracha, a mãe amassava um pedacinho de miolo de pão para apagar. A folha ficava toda borrada e até rasgava às vezes.
Quando era necessário colar figuras no caderno, a mãe preparava uma mistura de farinha de trigo e água para “quebrar o galho”.
Renata sonhava em ter um jogo de canetinhas da Sylvapen de vinte e quatro cores, mas a mãe comprava apenas o de seis. Cadernos e lápis eram recebidos no kit do caixa escolar. Quando o kit era distribuído na sala de aula, todo início de ano, Renata sentia uma pontinha de vergonha pelos olhares de desprezo de alguns colegas que faziam questão de exibir os materiais comprados nas papelarias do bairro.
Essas dificuldades nunca tiraram de Renata a vontade de estudar. Na oitava série, uma professora que ela admirava muito disse que, com tanto esforço e dedicação, ela iria longe. Foi um incentivo que jamais esqueceu.
Quando retornava para casa no final das aulas, vinha acompanhada por uma colega que morava na mesma rua.
Ao chegarem próximas da casa de Renata, a colega a aconselhava a passar direto e entrar na casa vizinha, que era mais bonita, para evitar que os colegas de escola soubessem que ela morava na casa mais feia da rua. Renata obedecia, pois não tinha maturidade suficiente para refletir que o valor das pessoas não está nos bens materiais. Foi compreender isso anos mais tarde.
Depois, Renata teve que decidir se iria para o segundo grau regular ou técnico. Os cursos técnicos abririam mais oportunidades de colocação no mercado de trabalho, mas apenas as escolas particulares ofereciam essa modalidade.
Sua mãe, D. Aurora, alertou que não teria como pagar as mensalidades e reforçou que a filha, assim como fizeram as irmãs mais velhas, teria que procurar um emprego para ajudar nas despesas de casa. Para a mãe, era suficiente ter o primeiro grau completo e o curso de datilografia. Quem não tinha estudo geralmente trabalhava na linha de produção das fábricas, dizia ela.
O sonho de Renata ia muito além. Ela queria fazer o curso técnico e depois a faculdade. O Curso de Contabilidade já havia iniciado e por sorte Renata encontrou um trabalho temporário em uma loja, o que garantiu o pagamento da matrícula. Ainda assim, não conseguia tirar da cabeça a preocupação de que em breve venceria a primeira mensalidade.
A peregrinação em busca de um emprego efetivo fez com que Renata saísse todas as manhãs batendo de porta em porta nos comércios e indústrias da região, preenchendo fichas de propostas de trabalho nas agências do centro da cidade.
Uma vizinha indicou Renata para trabalhar em uma oficina de costura no bairro em que morava. Ela não pagaria condução e poderia levar seu próprio almoço. No entanto, foi uma experiência nada agradável.
As condições de trabalho neste lugar eram péssimas e desafiaram a resistência física de Renata. O encarregado exigia que as funcionárias ficassem em pé o dia todo, alinhavando barras de saias que seriam, depois, arrematadas nas máquinas pelas costureiras.
Esse trabalho durou dois meses, e o salário só foi recebido depois que a mãe de Renata fez um verdadeiro escândalo na porta da oficina, exigindo os direitos da filha.
Depois disso, a sorte começou a bater à porta, e várias agências de emprego fizeram contato com Renata. Não havia mais o que se preocupar com as mensalidades da escola, e ela ainda poderia ajudar com as despesas de casa.
O sonho de fazer uma faculdade também foi conquistado, e a aprovação no curso de Pedagogia foi comemorada pela família quando o nome de Renata saiu publicado no jornal na lista de aprovados. Foram quatro anos de estudos e muita persistência para conciliar trabalho e escola, mas sempre teve a certeza de que o esforço seria recompensado no futuro.
Um dia, Renata estava olhando as vitrines de uma loja quando, por acaso, encontrou D. Elza, sua primeira professora no grupo escolar. Como não a reconhecer? A mesma que havia lhe ensinado a escrever as primeiras palavras e despertado sua vontade de se tornar professora.
Foi um encontro do destino. Renata havia concluído o curso de Pedagogia, e D. Elza estava prestes a se aposentar. Essa foi a oportunidade para iniciar sua carreira como professora, e, por indicação de D. Elza, assim aconteceu.
No primeiro dia de aulas, D. Elza apresentou sua substituta aos alunos da segunda série e as crianças observavam a novata com curiosidade.
Renata olhou para aqueles olhinhos curiosos e se sentiu realizada. Depois, percorreu os corredores da escola, que ainda guardavam as lembranças do tempo em que estudara ali. Podia ouvir as vozes e os risos das amigas de infância. As cenas passavam como flashes em sua memória. Cada árvore daquele jardim havia sido regada com as gotas de suor e com o seu amor.
A dedicação da mãe, improvisando borrachas com miolo de pão e cola com farinha molhada, veio à sua mente. Sentiu-se tão plena e abençoada. Todo aquele esforço valeu a pena, e sua mãe, onde quer que estivesse, certamente se orgulharia dela.
A menina pobre que não tinha quase nada a não ser a cabeça cheia de sonhos e uma vontade enorme de vencer na vida estava colhendo os frutos de seu esforço. Ela conseguiu reescrever sua história nas páginas da vida e segue acreditando que os sonhos podem ser realizados.
Ainda que lhe tenham faltado sapatos novos na infância, o Criador lhe deu pés para caminhar e determinação para seguir as trilhas de seu destino, recolhendo pedras e construindo castelos. Hoje, sente-se uma rainha!