Aninha

As crianças se reuniram na sala para brincar com a prima Rafaela, que acabara de se mudar para a mesma rua. A família veio do interior em busca de uma vida mais próspera em São Paulo.

Aninha observava com curiosidade as inúmeras malas de roupas e os sacos estufados com tantos pares de sapatos da prima. Ao perceber o deslumbramento da menina, Rafaela logo tratou de esvaziar os sacos, espalhando os pares de calçados pelo chão. Eram sandálias de variados modelos e cores, sapatos de verniz que brilhavam, botinhas de cano curto e longo, chinelos de dedo, além de uma variedade de tênis e alpargatas.

Aninha segurava cada par de sapatos para sentir o toque das texturas em suas mãos e olhar de perto a beleza das fivelas e dos laços que os adornavam. Depois, as malas foram abertas uma a uma, revelando as mais belas roupas de criança. As peças cor-de-rosa despertavam ainda mais o desejo de Aninha. Diante de seus olhos, desdobravam-se blusas de várias estampas, saias de diferentes comprimentos, calças e vestidos, um mais bonito que o outro.

Os olhos de Aninha brilhavam diante de tanta diversidade e beleza. Nem em sonhos havia visto algo assim. Cada peça que lhe era entregue criava um mundo de imaginação, e a menina, de corpo franzino e cabelos desalinhados, se via como uma princesa desfilando por castelos em carruagens encantadas.

A brincadeira terminou ao entardecer, e Aninha voltou para casa. Entrou no quarto, onde o espaço era dividido com as três irmãs. Abriu o guarda-roupas e procurou alguma peça que a agradasse. Queria ter a chance de continuar sonhando, mas só encontrou roupas que haviam sido passadas de uma irmã para a outra quando não lhes serviam mais. Nada que pudesse ser comparado às lindas roupas da prima.

Os sapatos ficavam guardados em um pequeno móvel ao lado da cama, espaço suficiente para acomodar chinelos de dedo e congas, além de dois pares de sandálias que eram das irmãs mais velhas.

Aninha adormeceu sonhando com a beleza das roupas e sapatos que gostaria de ter. Na manhã seguinte, vestiu seu uniforme escolar e calçou os congas para ir à escola. Antes de sair, pegou um pedaço de papelão e colocou na sola do calçado para tapar o buraco, pois estava chovendo e não poderia ficar com os pés molhados.

A menina cresceu usando as roupas e sapatos das irmãs mais velhas, com a esperança de que um dia poderia ser diferente.

O tempo passou como num piscar de olhos e Aninha se deu conta de que já era uma mulher e que aquele passado havia ficado para trás. Estava bem profissionalmente, havia progredido e constituído uma linda família.

O apelido carinhoso também ficou para trás; não era mais chamada de Aninha. Tornou-se Ana para os familiares e Dona Ana no trabalho. Seus filhos, um garoto de oito anos e a caçulinha de dois, completavam sua realização pessoal.

Durante a semana, Ana era diretora-proprietária de uma escola de Educação Infantil. Após se formar em Pedagogia, seu marido a apoiou para que o sonho de ter sua própria escola fosse concretizado. Investiram todos os recursos nesse projeto, uma poupança que haviam feito ao longo dos anos.

O marido, Luiz, era engenheiro civil; sua formação em ciências exatas lhe deu competências para lidar com tecnologia das construções, estruturas de materiais, geotecnia, solo e topografia, entre outras áreas que ele tanto gostava.

Apesar de não ser familiarizado com as teorias e práticas educacionais, Luiz sempre valorizou o trabalho da esposa e admirava o modo como ela tratava as crianças na escola, sua habilidade em se comunicar com os pais e a facilidade que tinha em mediar conflitos dos mais variados tipos, seja entre alunos, pais ou professores.

Nas festas e comemorações da escola, que geralmente aconteciam aos sábados, Luiz e os filhos, Thiago e Stella, estavam sempre presentes, interagindo com a comunidade e ajudando no que fosse preciso.

Pedidos de ajuda não faltavam: um problema na rede elétrica, uma torneira pingando e todo tipo de evento inesperado que costuma acontecer bem quando mais se precisa que tudo funcione bem. O filho mais velho ajudava a organizar as filas e as brincadeiras das crianças, enquanto a mais novinha ficava aos cuidados da mãe.

Ana, além de ser uma profissional excelente, também era uma mãe primorosa. Gostava de manter os filhos bem cuidados, alimentados adequadamente e vestidos com capricho, sem que precisassem ostentar marcas ou coisas do tipo.

Como era costume, antes do aniversário dos filhos, Ana saía com eles para comprar a roupa que usariam na festa. Dessa vez, levou a caçulinha para escolher um vestido bem bonito, calçado e tiara combinando.

Passaram mais de duas horas olhando as vitrines antes de se decidirem entre tantos modelos lindos. Era difícil escolher. Stellinha gostou tanto que não houve quem a convencesse a tirar o vestido do corpo, o sapato e a tiara.

Era só para experimentar, retrucou a mãe, mas não viu problema em deixar que a menina usasse a roupa até chegarem em casa.

No trajeto de volta, Ana parou o veículo no semáforo quando uma garotinha de uns cinco anos se aproximou para oferecer os doces que estava vendendo.

Ao baixar o vidro para dar atenção, Ana notou que a menina olhava fixamente para sua filha, que estava no banco traseiro.

O corpo franzino da garotinha, as roupinhas simples e o chinelo de dedo nos pés fizeram Ana se recordar de sua própria infância, quando observava as roupas e sapatos novos da prima e sentia uma vontade enorme de tê-los para si, como se pudesse ser a princesa que via em seus sonhos.

A menina nem conseguiu oferecer as balas e, em sua inocência, disse: “Tia, quando essa roupa não servir mais pra ela, você pode me dar?”. Era como se não percebesse que sua filha era bem menor e que a roupa jamais serviria nela.

O semáforo ficou verde e não houve tempo de comprar os doces da menina, mas, num ímpeto de emoção, Ana disse: “Daqui a pouco eu volto e você me espera naquele posto de combustíveis da esquina. Tenho algo para lhe dar.”

Ana voltou à loja em que havia comprado os trajes da filha e pediu que a vendedora separasse outro vestido, calçado e tiara iguaizinhos, mas de maior tamanho.

Exigiu que o embrulho do presente fosse feito com capricho e, dentro do pacote, escreveu um bilhete para a mãe da menina, dizendo: “Este presente é para a sua filha, com muito carinho. Se for da sua vontade, gostaria de conhecê-las melhor; por isso, deixo o endereço da escola em que trabalho para que me procurem.”

Em menos de uma hora, o carro estacionou no posto de combustíveis e a menina estava lá, encolhida em um canto da parede.

Ana baixou o vidro do carro e a chamou. Os cabelinhos loiros despenteados esvoaçavam com o vento enquanto ela corria em sua direção.

Ana estendeu as mãos com o presente, e a menina agarrou aquele pacote como se fosse o maior tesouro que já recebera na vida.

Nem houve tempo de perguntar seu nome. Saiu em disparada, gritando pela mãe para comemorar a grande recompensa depois de mais um dia de trabalho nas esquinas e semáforos da cidade. Por mais doces que pudesse vender, jamais seria o suficiente para comprar um presente como aquele.

A semana começou agitada na escola, com os pais vindo para matricular os filhos. Ana estava em sua sala, assinando uma papelada que parecia não ter fim, quando uma auxiliar anunciou que tinha uma família querendo falar com ela. Justo agora? E nem mesmo ligaram para agendar um horário? pensou ela, em meio a tantas coisas para resolver.

A família entrou na sala da direção, de um modo que expressava claramente o constrangimento que estavam sentindo. Pai, mãe e duas crianças vestidas de maneira simples, com os cabelos desalinhados, como se há muito tempo não soubessem o que era uma escova de pentear.

Imediatamente, Ana reconheceu a menininha que vendia doces no semáforo. Levantou-se e, em um gesto atencioso, afastou as cadeiras da mesa para que se sentassem. O pai, Orlando, a mãe, Nair, e os filhos Renan e Jenifer, de dois e cinco anos.

Menos de meia hora foi suficiente para contarem a sua história e como foram parar naquela situação, sobrevivendo com a venda de doces nos semáforos.

Orlando explicou que tinham vindo da Bahia em busca de melhores condições de vida. Viveram por dois anos em uma casa alugada perto da Ceagesp, onde ele ainda trabalhava como carroceiro, transportando as compras dos clientes da feira até o estacionamento.

A esposa, Nair, passava roupas para fora, fazia marmitex para vender e cuidava das crianças. Quando veio a pandemia de Covid, em 2020, não havia mais trabalho para eles nem condições de pagar o aluguel.

Atualmente, a família passava o dia vendendo doces na rua e dormia em uma barraca montada no canteiro central da Avenida Dr. Gastão Vidigal, na Vila Leopoldina. Essa localização permitia que Orlando continuasse trabalhando como carroceiro na Ceagesp, que fica bem em frente, nem precisando gastar com condução. O dinheiro que recebiam era suficiente apenas para comer.

“A mulher não consegue mais trabalho”, disse Orlando. “Ninguém quer arriscar dar uma oportunidade para alguém que vive nas ruas, e eu compreendo isso”, afirmou ele, enquanto lágrimas rolavam em seu rosto.

Ana ouviu atentamente, olhando nos olhos daquele pai de família. Com sua experiência em lidar com pessoas, percebeu a sinceridade daquele relato.

Disposta a ajudar, Ana ofereceu um emprego a Nair como merendeira e perguntou a Orlando o que mais ele sabia fazer, além de ser carroceiro.

Sem conseguir acreditar no que estava acontecendo, ele foi detalhando uma série de habilidades que tinha como servente de pedreiro, encanador e eletricista. “Eu era o melhor na Bahia, pode confiar.”

A escola precisava mesmo de um profissional do tipo “faz tudo”. Estava aí uma oportunidade para ele também, e Ana ofereceu-lhe o cargo de auxiliar de manutenção.

Os filhos teriam vaga na escolinha, com bolsa integral na Educação Infantil. No terreno da escola, bem lá nos fundos, havia dois cômodos que poderiam ocupar. Tudo muito simples, mas bem melhor se comparado a dormirem embaixo da lona de uma barraca, correndo todos os riscos: chuva, frio e a maldade alheia que coloca os moradores de rua na posição de ameaça à segurança pública e ao bem-estar dos mais afortunados.

Ana chegou em casa naquela tarde sentindo-se de alma lavada, como se estivesse passando a limpo todo o seu passado. Abriu as portas do guarda-roupas e viu uma diversidade de cores, texturas e modelos que podia usar quando quisesse. Peças novinhas, compradas a seu gosto, que apenas ocupavam lugar nos cabides. Sapatos havia aos montes, para todas as ocasiões.

Passou um bom tempo admirando suas roupas e sapatos. Certamente, não precisava de tudo aquilo. As coisas mais importantes já haviam sido conquistadas. Crescera com privações materiais, mas envolta por muito amor e união na família, o que lhe deu a base para distinguir o que é desejado do que é essencial. Agora, tinha certeza de que seus sonhos não dependiam deles. Afinal, o essencial é invisível aos olhos, como já disse Antoine de Saint-Exupéry no livro que a inspirou na infância, O Pequeno Príncipe.

Decidiu doar a maioria das peças e, ainda assim, quando abria o guarda-roupas, tinha a sensação de que lá dentro havia mais do que precisava.

Demorou uma vida inteira para se dar conta de que o apego às coisas materiais aprisiona as pessoas. Mas a falta do essencial para se viver coloca as pessoas em um lugar de invisibilidade. Elas passam a ser vistas como coisas e não como gente que precisa e tem o direito de viver bem e ser feliz.

Quantas vezes, na infância, sentiu-se privada de coisas materiais, sonhando com o que não podia ter. A lembrança das bonecas que ela via nas vitrines das lojas vieram a sua mente. Hoje, sabia que elas jamais poderiam substituir a memória das brincadeiras de infância, quando, junto das irmãs, confeccionava bonecas com os caroços de manga que eram recolhidos embaixo das árvores.

Na infância, as roupas que vestia eram simples e ajustadas ao seu corpo franzino, mas isso não a impediu de criar laços fortes de amizade. Hoje, o dinheiro lhe permite comprar quase tudo, menos uma amizade verdadeira.

Da escola, Ana tinha muitas lembranças. A lancheira preparada todas as manhãs pela mãe, com o mesmo cardápio: pão com margarina e limonada, era um sabor que ela podia sentir na memória. Lanches temperados com o afeto da mãe.

Lembrou-se das irmãs mais velhas, que, na infância, passaram por privações ainda maiores. Nas manhãs de inverno, quando as temperaturas em São Paulo baixavam para graus negativos, elas iam trabalhar com blusas fininhas e sandálias que deixavam os pés totalmente descobertos.

Recordou-se do dia em que a irmã chegou em casa esbaforida, com os cabelinhos loiros esvoaçando, segurando um par de sapatos que encontrou jogados em uma lixeira. Era um achado e tanto para quem só tinha chinelos e sandálias.

Em outra ocasião, a irmã mais velha saiu para trabalhar em um dia de chuva, protegida por um saco plástico porque não tinha guarda-chuva.

Foram tempos difíceis, mas Ana se sente vitoriosa e orgulhosa de sua trajetória e das conquistas das irmãs, que, assim como ela, colhem os frutos das sementes plantadas com amor.

Nesta noite, Ana rezou sem dizer uma só palavra. Pela janela aberta de seu quarto, olhava as estrelas em um gesto de gratidão ao Criador do Universo por vestir o céu com tamanha beleza.

Neusa Maria Cesarino Martins
Enviado por Neusa Maria Cesarino Martins em 15/08/2024
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