Vidas marcadas
Janete chegou do interior de Minas Gerais, onde vivia com os pais, para morar com a irmã Fátima em São Paulo e ajudá-la nos cuidados com as crianças. Fátima já tinha dois filhos: um de nove anos e outro de três, e em breve nasceria o terceiro.
Aníbal, pai das crianças, trabalhava como taxista, com ponto fixo no aeroporto de Congonhas. Costumava sair de casa bem cedo e chegava no começo da noite. Com a família crescendo, tinha que estender as horas de trabalho para garantir o sustento de tantas bocas.
O bebê de Fátima nasceu saudável, e a presença de Janete na casa foi fundamental para ajudar a irmã. Pela manhã, Janete ia à escola, onde cursava a oitava série, bem pertinho de sua nova casa. Voltava na hora do almoço, acompanhada do sobrinho de nove anos, que estava na terceira série. O menorzinho, de três anos, ficava em casa com a mãe e o irmão recém-nascido.
As tardes eram sempre movimentadas. Janete e Fátima dividiam os serviços domésticos e os cuidados com as crianças. Havia muita roupa para lavar e passar, e as panelas de comida, assim como a geladeira e os armários, precisavam estar sempre abastecidos, porque o apetite das crianças era voraz.
O cunhado, Aníbal, chegava em casa no começo da noite, geralmente estressado pelo trabalho no trânsito da cidade, e queria tomar um banho e ter o jantar servido para, em seguida, ver um pouco de esporte na TV. Quase sempre, dormia no sofá. A esposa o flagrava roncando com a TV ligada e o acordava para que fosse dormir na cama.
No domingo, era folga de Aníbal, mas ele pouco se dedicava à família. Estava cansado demais para atender aos apelos dos meninos, que insistiam que fossem jogar bola no campinho do bairro. Janete, a tia, ficava comovida com o chororô das crianças e os acompanhava. “Somente uma partida”, alertava a tia. “Tenho que voltar logo para ajudar a mãe de vocês a fazer o almoço.”
O almoço de domingo era a única ocasião em que a família se reunia para uma refeição. A macarronada com frango assado era tradição, assim como o refrigerante de laranja, preferido das crianças.
A melhor parte do frango era reservada para o chefe da família, a esposa fazia questão. Ela achava que ele merecia esse agrado; afinal, era ele quem trazia o dinheiro para casa no fim do dia. Os meninos escolhiam as asas e um pedaço do peito do frango, enquanto Janete e Fátima ficavam com o que sobrasse, não fazendo questão de escolher.
Depois do almoço, o bebê era amamentado pela mãe, enquanto Janete lavava a louça, os meninos brincavam no quintal e Aníbal roncava no sofá.
Janete era uma adolescente cheia de sonhos e precisava de um pouco de distração. Num sábado à noite, as colegas da escola a convidaram para um bailinho na casa de Pedro, daqueles organizados na garagem, tão comuns nos anos 80. Ela foi e acabou arranjando até uma paquerinha. Nos sábados seguintes, outros bailes e passeios surgiram, e ela estava animada.
O cunhado, Aníbal, é quem não gostou dos passeios de Janete. Demonstrava um certo ciúme, mas dava desculpas de que estava tentando proteger a cunhada e preservá-la dos comentários maldosos da vizinhança.
O clima na casa esquentou, quando Aníbal, segurou no braço de Janete, tentando impedi-la de sair de casa. Os colegas a esperavam no portão e presenciaram a cena um tanto autoritária. Fátima tentou intervir, mas não teve voz ativa para contrariar o marido. Janete recolheu-se no quarto aos prantos e saiu somente no dia seguinte quando escutou o barulho do motor do carro de Aníbal saindo no domingo de manhã, para abastecer o veículo.
Durante o almoço, todos estavam em silencio, até as crianças perceberam o clima ruim entre os adultos. Almoçaram mais depressa que o costume e foram para o quintal.
O olhar de Aníbal, de vem enquanto, se cruzava com o olhar de Janete que ficava desconcertada. A adolescente, apesar de estar morando na casa para ajudar a irmã nos serviços domésticos e cuidados com os pequenos, sentia-se devedora, como se estivesse sendo sustentada pelo cunhado.
Naquela tarde, enquanto a louça era lavada, Aníbal espichava os olhos para Janete. Um olhar desconcertante que a deixou completamente vulnerável. Não demorou muito para que ele tentasse se aproximar, com o pretexto de pegar um copo de água e esbarrar “acidentalmente” na cunhada.
As insinuações e investidas do cunhado passaram a se repetir e Janete ficou acuada. Uma tarde, depois da escola, Janete ficou em casa cuidando dos sobrinhos enquanto sua irmã foi levar o bebê ao pediatra.
No meio da tarde, apareceu Aníbal. Guardou o carro na garagem, entrou em casa e levou as crianças para brincar de vídeo game no quarto. Com o pretexto de que queria descansar um pouco, deixou os meninos brincando, mas ao sair, trancou a porta do quarto deles com chave.
Janete estava na sala e sentiu um arrepio quando ele se aproximou, tocando em seus cabelos. Sentiu vergonha de não ter conseguido recuar. Aquele homem forte e dominador, deixou-a sem ação. Sentia-se imobilizada e com medo do tom ameaçador de Aníbal.
Depois desta primeira vez, seguiram-se as outras, sempre nas tardes em que a irmã levava o bebê para vacinar ou benzer de quebranto na casa da dona Luíza. Se abrisse a boca para contar a alguém, ele negaria tudo e a mandaria de volta para o interior de Minas Gerais.
A simples possibilidade de voltar a morar com os pais no interior, apavorava Janete, pois a vida por lá era dura demais e cheia de privações. Havia se acostumado com a vida em São Paulo e gostava da companhia dos colegas da escola, além de estar apaixonada por Pedro, desde o primeiro baile onde dançaram de rosto colado.
A ideia de contar tudo para a irmã passou pela sua cabeça várias vezes, mas o medo de sua reação e o sentimento de culpa a calaram. Um ano se passou neste clima angustiante que Janete vivia.
O sobrinho mais velho começou a desconfiar e não demorou a contar para a mãe sobre os fatos estranhos que vinha presenciando. Fátima também já estava desconfiada, pois o retorno do marido mais cedo do trabalho se tornou comum.
Um misto de tristeza e raiva tomou conta de Fátima. Sentia-se traída de todos os lados: o marido infiel e a irmã que a apunhalava pelas costas, não honrando os laços consanguíneos que tanto prezava. A raiva não a deixava refletir que a irmã era uma adolescente de apenas quinze anos e que Aníbal era um homem de quarenta, cometendo um crime.
Fátima não tinha essa consciência do crime que o marido estava cometendo; fora criada em uma época em que o machismo era regra e pouco se questionava. A errada era sempre a mulher que seduzia os homens, independentemente da idade delas. Homens eram perdoados pelos seus deslizes; afinal, não havia como comparar os desejos e instintos deles com os das mulheres.
Fátima despejou toda a sua revolta em Janete, exigindo que voltasse para a casa dos pais e jamais contasse a ninguém o que havia se passado entre ela e Aníbal. Não iria permitir que a sem-vergonhice da irmã acabasse com o seu casamento. Ajudou a arrumar a mala com os pertences de Janete e despachou-a para Minas Gerais.
Janete permaneceu calada a viagem toda, imersa em seus pensamentos. Sentia-se culpada por tudo que havia acontecido. Como pôde trair a confiança da irmã e colocar em risco o seu casamento? Nem com Deus conseguia se desculpar; tinha vergonha de confessar a Ele tamanho pecado.
Chegou na casa dos pais no final da tarde, com uma mala nas mãos e os olhos inchados de tanto chorar. Os velhos acharam que era saudade; acreditaram no que Fátima disse, que Janete sentia falta da vida simples da roça e não havia se acostumado com a correria da cidade grande.
Aníbal chegou em casa e não encontrou a cunhada, nem teve a ousadia de perguntar por ela. Sabia muito bem que a mulher estava desconfiada há muito tempo, mas também sabia que ela tinha motivos suficientes para não o abandonar. Como criaria sozinha os três filhos? Além disso, considerava Fátima incapaz de tocar a própria vida e ter um emprego. Não tinha estudo, era mulher de um homem só e fora criada para servir como esposa. O que diriam as beatas da igreja se ela se separasse dele? Mulher separada não presta.
Os anos se passaram, as crianças cresceram e Aníbal se aposentou. Agora, passava mais tempo roncando no sofá.
Fátima nunca mais foi a mesma; viveu amargurada e, a cada dia, tinha mais certeza de que havia errado ao permacer casada. Errou também ao permitir que Aníbal ficasse impune. Não foi capaz de enxergar na irmã a figura da adolescente vulnerável que ela realmente era. Nunca mais tiveram contato.
Um dia, Aníbal foi encontrado caído ao lado do sofá. Teve um infarto fulminante. Os filhos já estavam todos casados e independentes. Sentiram a morte do pai, mas iriam superar.
Havia também muita mágoa em seus corações. Respeitavam-no como chefe da família, mas ressentiam-se da forma como sempre tratou a esposa. Cresceram vendo a mãe esconder-se para chorar e enxugar as lágrimas que teimavam em cair dos olhos toda vez que o pai chegava tarde em casa com a desculpa de que havia trabalhado muito. As marcas de batom na gola da camisa e o cheiro de perfume barato denunciavam o contrário.
Fátima passou a viver sozinha naquela casa, que agora lhe parecia enorme. Um vazio ecoava em todos os cômodos; a solidão atravessava sua alma, e uma avalanche de lembranças machucava seu coração e a torturava com culpa.
Agora, Fátima tinha consciência do crime cometido por Aníbal, mas nada mais podia fazer a respeito. Se, naquela época, tivesse conhecido as leis que regulamentam e protegem mulheres e crianças contra abusos tão comuns, teria denunciado.
Esses pensamentos levaram Fátima a retomar os laços de afeto que ainda guardava no coração em relação à irmã. Os pais, infelizmente, já haviam partido há muitos anos, sem que pudesse se despedir deles. Era uma ferida aberta em seu peito, e não queria que o mesmo acontecesse com a irmã. Desejava morrer em paz, depois de pedir perdão a ela.
Chegou à pequena cidade do interior de Minas Gerais no sábado pela manhã. Fátima viajou a noite toda sem conseguir fechar os olhos, rememorando todo o seu passado e ensaiando as frases que desejava dizer à irmã.
Janete quase não a reconheceu quando a viu no portão. Os cabelos embranquecidos e as rugas profundas no rosto demonstravam o quão dura a vida havia sido para Fátima.
Felizmente, para Janete, o destino preparou um bom marido e duas filhas que lhe deram muito orgulho. Do passado, apenas o marido sabia. Janete fez questão de lhe contar; queria um relacionamento sincero e sem medo dos fantasmas do passado. No entanto, seu coração não ficou imune às marcas que ainda doíam toda vez que se lembrava da irmã e se sentia culpada.
Fátima não conseguiu dizer uma única frase ensaiada nas últimas horas. De cabeça baixa, aproximou-se de Janete e, caindo aos seus pés de joelhos, conseguiu balbuciar: “Me perdoa”.
As mãos de Janete seguraram firmemente os braços dela e a ergueram. Foi um abraço tão demorado e caloroso que parecia querer tirar proveito de todos os abraços que a vida lhes privou. Um abraço de irmãs, um abraço de perdão, um abraço de amor.