O que o tempo não mudou

Entrei no casarão com grande curiosidade. Pé ante pé. A madeira estalava enquanto ouvia o som oco do assoalho que servia de teto para o porão. Porão este que fora palco de uma época triste e sombria. Impossível olvidar...

Ao subir a escada que dava acesso ao segundo piso, adentrei à ala social da velha casa de um velho Barão. Os móveis de época pareciam esperar pacientemente por seus antigos donos. Pareciam esperá-los após o retorno de uma viagem diferente, sem os cabriolés, sem os cavalos, sem nada. A viagem longínqua do além-vida.

O gomil igualmente aguardava que fosse manuseado por uma mucama, vertendo a água cristalina sobre as mãos de seu senhor.

No espelho bisotado, eu via o reflexo dos móveis robustos, todos importados da Europa, de uma época que remetia ao Império no Brasil. Requintados com seus entalhes que lembravam o ciclo de ouro do café. Ali era uma sala de negócios. Um grande quadro na parede exibia uma tela com a figura de um homem imponente, provavelmente o Barão. Podia ver aqueles senhores com seus bigodes fartos, envoltos em seus negócios, cuspindo em escarradeiras delicadamente pintadas, o que dava ás peças, ares de rica porcelana de serviço de mesa.

A sala tinha portas que davam para duas alcovas. Quartos escuros com cama simples mas parrudas. Ao lado de cada cama, um móvel pequeno onde se escondia um penico, também de louça porém sem pintura. Ali, os forasteiros que vinham negociar ou pernoitar apenas, ficavam bem instalados, mas também trancados até o dia seguinte. Assim, as donzelas e as senhoras ficavam guardadas de olhares e sabe-se lá, de quais intenções...

Um corredor atrás de uma pesada porta levava a um escritório, ricamente ornamentado, móveis torneados, cadeiras bistrô, artefatos com detalhes em madrepérola adormecidos em uma mesa onde havia um pesado livro de páginas bem amareladas... Ali estavam as anotações de muitas transações comerciais. Compra e venda de escravos, aquisição de insumos, venda do café que ali se plantavam e manejavam nos amplos terreiros vistos pelas janelas laterais do casarão.

Registros de um tempo que havia parado naquele lugar.

Na outra parte da casa, uma sala de jantar. Abaixo de um rico lustre de Baccarat, uma mesa elegante com pequenas donzelas de vidro e jarros de cristal, as cadeiras tinham estilo austríaco. Uma rica mobília importada para receber os convidados, certamente para os saraus, quando alguma donzela tocava o piano que restava mudo há anos num canto do salão. Um exemplar valioso, bem conservado e talvez desafinado.

Eu examinava cada detalhe com a tola esperança de encontrar um remanescente daquele tempo; uma velha mucama, uma senhora preparando doces ou dedicada a um bordado, uma criança rindo num canto com sua camisola branca e rendada, seus cabelos cacheados onde pela tenra idade não se definia se se tratava de um menino ou uma menina... Não os vi mas confesso que os senti.

As pinturas de afrescos nas paredes me traziam uma nostalgia que não sabia explicar. Tons de verde, branco e cinza. Composições de ramos, flores e rococós como cipós.

Num dos quartos havia os móveis do casal, e desse quarto se passava a outro onde havia três camas. Todos os móveis ricamente entalhados, mesas com jarros de prata, mesinhas de apoio e armários sofisticados. Abri-los, não tive coragem... mas minha imaginação mostrou-me o volumoso vestuário da época. Saias e sobre-saias. Espartilhos talvez... Sapatos forrados de tecidos finos.

Ali provavelmente era o quarto das filhas do barão, meninas que cresciam fechadas em quatro paredes até completarem a idade de serem dadas ao casamento. Certamente desposariam um primo para que a fortuna ficasse em família ou então a algum nobre, para que se pudessem unir as riquezas vizinhas... Tempos em que as mulheres que não viviam essa experiência, eram tratadas como inúteis ou até loucas, caso se rebelassem ao desejo paterno de que unissem em matrimônio à um idoso viúvo ou a quem não tinham afeição. Naquele tempo a mulher era apenas a parideira e lhe cabia cuidar dos filhos, organizar a cozinha e as refeições, bordar os enxovais das filhas e rezar...e para isso, dentro da casa, próximo ao alpendre de gradis vindos de navio, havia uma capela, pequena mas bem ornada, com sacrário e genuflexório, sagrada à Nossa Senhora da Abadia, padroeira do lugar. Ali, na parte de dentro, a família assistia a missa. Do lado de fora, os escravos domésticos ou outros convidados que não faziam parte da família podiam também escutar a missa, que era rezada em latim.

Um tempo de grande opulência, às custas dos negros escravizados, tratados como animais, segregados pela arrogância do povo que aqui se instalou, após dizimarem os indígenas que eram os verdadeiros donos e senhores dessa terra. E assim todos eles escreveram a história do nosso país, do nosso povo miscigenado, que através dos séculos foi se tornando o povo brasileiro, um povo que se condói pelos irmãos escravizados, pelos nativos dizimados, mas que se alegra nas rodas de samba, na herança de nossos antepassados.

E assim, visitando o casarão da velha fazenda, constatei emocionada, que apesar de hoje ser tudo tão diferente, ainda os vemos lado a lado, nas ruas, nos campos e nos lares... em nossa antiga e velha maneira de ser. Vejo-os de mãos dadas, através do tempo, seguirem eternamente, personagens de uma história real, o senhor Rude e a senhora Delicadeza.

Cláudia Machado
Enviado por Cláudia Machado em 09/08/2024
Reeditado em 15/08/2024
Código do texto: T8125528
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.